Esta é uma história verídica. Qualquer semelhança com a realidade é legítima. Ocorreu por volta de 1940. Os nomes verdadeiros foram preservados, sendo substituídos por outros, fictícios. De acordo com os costumes e tradições do país em que moravam e que trouxeram quando imigraram para o Brasil, o varão primogênito, tinha voz ativa sobre os demais irmãos. Yussef Nagib era o filho primogênito de imigrantes libaneses. Seus pais tiveram onze filhos. A família sobrevivia de um pequeno comércio e uma renda de três casas modestas que estavam locadas na cidade. Mas mesmo assim era uma família alegre, muito unida. O patriarca, Elias Nagib tinha casado com Sarah Chartum, ele com 30 anos e ela com 14 anos de idade. O casamento foi celebrado no país de origem, no Oriente Médio, onde tiveram duas filhas: Lucy e Martha. Foi um período em que a América era a terra dos sonhos. O Brasil incentivava a vinda de imigrantes.

Diante de uma constante ameaça de conflitos bélicos, o casal e as filhas imigraram, deixando propriedades na terra natal, sob o cuidado dos irmãos de Nagib. Na ocasião, todos os homens capazes estavam sujeitos a serem convocados para uma guerra fraticida. Dois irmãos de Sarah também imigraram, sendo que um ficou no Rio de Janeiro e outro foi para Belo Horizonte. Alguns primos foram para os Estados Unidos. Todos sentiam-se como se estivessem em uma diáspora!

Pode-se dizer que foi um ato de muita coragem, mudar para uma terra com costumes, idioma e comportamento social tão diferentes. No início foi um choque. Mas aos poucos foram adaptando-se. Nagib identificou-se com o comércio, aos poucos estabeleceu-se com um pequeno armazém.
Quase todo ano Sarah estava grávida. Com isso em certo espaço de tempo teve 11 filhos.

Joaquim Raposo, a quem o pessoal chamava de Quinzinho Raposa, talvez pelos seus olhos buliçosos, oficialmente era corretor de imóveis, mas dizia-se um grande conhecedor das leis vigentes. Pois bem, Raposa, que era assim que o chamavam, sugeriu ao Seu Elias, que para animar o seu estabelecimento, colocasse uma pequena lousa, com uma cortina na frente, dependurada ao alcance da vista de todos que estivessem em seu estabelecimento. Seu Elias iria escrever o nome de cinco bichos e fechar a cortina. À tarde, pelo rádio, saberiam o resultado da Loteria Federal. Os dois últimos algarismos identificariam o bicho que ganhou. O apostador tinha direito a 5 palpites e o jogo do bicho tinha 25 animais no total. O primeiro prêmio daria ao ganhador 40 por cento das apostas, o segundo ganharia 20 por cento, os outros três, dez por cento cada um. Seu Elias ficaria com dez por cento a título de “barato”, como chamavam a comissão para realizar o jogo. Caso ninguém acertasse o resultado, o dono do comércio embolsaria toda a féria das apostas.

Seu Elias, naquela noite não dormiu. Essa ideia o deixava excitado. No dia seguinte, encomendou ao Tiãozinho (Sebastião Fernandez) uma lousa pequena. Tiãozinho que era motorista da jardineira que servia o povoado, trouxe a lousa pensando: “O que esse maluco vai fazer com uma lousa desse tamanho ?”.

Assim que chegou a lousa , seu Elias foi correndo com um pedaço de feltro verde, até a casa da Dona Aurora, e encomendou uma cortina que iria correr em um pequeno varão.

Tudo pronto, no sábado houve uma aglomeração na venda do Seu Elias. Homens, acompanhados de suas esposas e crianças, queriam conhecer a novidade. A lousa dependurada, com os cinco nomes de bicho escritos, cortina fechada, em um bloquinho de papel. Seu Elias anotava os palpites dos apostadores. Usava um papel carbono, a primeira via ia para o apostador, a segunda permanecia no bloco.

Às cinco horas da tarde, o armazém do Seu Elias nunca esteve tão cheio. O rádio ligado ia dando os números da Loteria Federal. O povo tinha apostado em peso, foi um festival de “Ganhei!”. A alegria contagiava a todos. E o melhor, o dinheiro era gasto ali mesmo com cerveja para os homens e refrigerante para as mulheres e crianças.

A partir daquele dia, o povoado tinha jogo de bicho, todos os sábados. Dizem que até o Padre Roque mandou um coroinha fazer um jogo.!

Dona Filomena, certo sábado de manhã, foi fazer uma comprinha para fazer o almoço. No colo, o Tonico, sua criança espevitada, com a mãozinha, mechou na pontinha da cortina que cobria a lousa. Dona Filomena, rapidamente segurou a mão da criança, porém não a tempo de deixar exposta a pontinha da primeira letra à vista. Se observassem atentamente, veriam que era o início da letra “B”.

Era uma abertura tão sutil, que poucos perceberam. Mas a notícia correu o povoado: “O primeiro prêmio está escrito! É Burro!!.

Nesse dia teve até fila para apostar! Seu Elias não entendia o que tinha acontecido com o povo.

Às cinco horas da tarde, o locutor anunciou os resultados da Loteria Federal: Primeiro prêmio: Avestruz . Seu Elias puxou a cortina: Estava escrito: Bestruz!

Apesar de perderem a aposta, a gargalhada foi geral. Naquele dia , Seu Elias foi o sortudo que por obra e arte de uma criança buliçosa, acabou embolsando uma bolada.

As usinas de cana-de-açúcar e engenhos, povoavam a região. Youssef levava açúcar para o Norte do Paraná; nessa época, ainda era uma área que estava sendo desbravada, principalmente por japoneses e descendentes. Ele entregava açúcar para armazéns e adquiria feijão que ia buscar na roça. As estradas eram de chão batido; quando chovia, nenhum caminhão conseguia passar. Ficava um lamaçal.

Youssef e seu irmão Hassan, foram levar açúcar no Norte do Paraná e em seguida, foram até a propriedade do japonês Hiroshi Haruki , que tinha como tradutora sua neta, Cassia Keiko. A negociação foi realizada. O caminhão carregado, o pagamento feito, tudo pronto para percorrer a longa distância. Desabou um temporal. Cassia traduziu o convite para Youssef e Hassan jantarem e ambos aceitaram. O Sr. Hiroshi tinha expostas uma série de garrafas de aguardente , cada uma com um tipo de cobra dentro. Gentilmente , através da neta, ofereceu o exótico aperitivo aos seus convidados. Os dois irmãos agradeceram e declinaram, apesar do frio. Hassam era um moço bastante atraente, cabelos escuros, porte atlético, tinha a cor bronzeada de frequentadores de praia, algo que nunca fez. Seu bronzeado era natural. Cassia era meiga, suave, voz melodiosa. O cupido tinha disparado sua flecha. Ambos sabiam que o respeito estava acima de tudo. Infelizmente foi uma possível paixão que não foi em frente.

A chuva trouxe o frio, e Cassia trouxe uma sopeira fumegante. Todos se deliciando com a maravilhosa sopa. Yussef percebeu que era um prato consistente, com uns pedaços do que parecia ser peixe. Sem pudor diante daquela iguaria, saboreou até sentir-se refeito. Impressionado com o sabor, pediu para Cassia a receita, pois iria pedir à sua esposa que fizesse uma sopa daquelas.

Cassia traduziu para o Sr. Hiroshi. Este explodiu em uma gargalhada sem fim. Após rir muito, diante do silêncio dos irmãos, Cassia traduziu: “Meu avô disse que brasileiro não sabe fazer esse prato! Tem técnicas especiais. O senhor acabou de tomar uma sopa de cobra!”

Youssef sentiu um coice no estomago, o mundo parecia girar ao seu redor, transpirava muito! Não acreditava que tinha comido cobra!

Pediu licença, levantou-se da mesa e saiu para fora da casa. Embrenhou-se em uma roça de abacaxi. Ali ele devolveu à natureza o que apreciara tanto há poucos minutos. Não sabe ao certo quanto tempo permaneceu ali. Mas foi se refazendo aos poucos. Com um canivete, apanhou um abacaxi e fez dele o seu jantar.

No dia seguinte, o temporal havia passado. Agradeceram a hospitalidade, subiram no caminhão e vieram embora. No início da viagem, ambos permaneceram calados. Após um tempo, entreolharam-se com um sorriso maroto e riram muito da aventura vivida. Quantas histórias tinham para contar…

Acadêmico João Umberto Nassif

Cadeira número 35 Prudente José de Moraes Barros

ACADEMIA PIRACICABANA DE LETRAS.

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