… E o samba deu o troco
Acusada de ser uma cópia do jazz, a bossa nova acabou salvando-o da extinção
por ROBERTO MUGGIATI*
Antônio Nery/ Divulgação
“Santíssima Trindade”: Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto, no auge do movimento bossa-novístico
Um acentuado sentimento de inferioridade em relação aos Estados Unidos marcava a cultura brasileira em meados do século vinte. Na literatura, ainda éramos colonizados pela Europa, mas, de repente, com o rolo compressor das indústrias fonográfica e cinematográfica, passamos a viver sob a influência direta de sons e sonhos fabricados pelas gravadoras americanas e por Hollywood.
A “política da boa vizinhança” do governo Franklin Roosevelt nos deu uma caricatura do brasileiro por Walt Disney, o papagaio Zé Carioca, e a explosão de Carmen Miranda, a Brazilian Bombshell. Em troca, cedemos aos americanos a base aérea de Natal, o “Trampolim da Vitória”, e nossos pracinhas serviram de bucha de canhão para os Aliados na sangrenta frente italiana. Mas saímos da guerra com uma reserva monetária que daria para antecipar em uma década os “50 anos em 5” de JK. Nosso desenvolvimento perdeu-se na política econômica do governo Dutra, que privilegiou as empresas estrangeiras e facilitou a importação de quinquilharias. O Brasil entrou na Era do Plástico e viveu aqueles anos sob o signo cultural do ioiô.
A incômoda influência americana foi exorcizada através da música. Já em 1940, Carmen Miranda se defendia em “Disseram que Eu Voltei Americanizada” (Luís Peixoto-Vicente Paiva):
“E disseram que eu voltei
americanizada
Que não suporto mais o
breque de um pandeiro
E fico arrepiada ouvindo
uma cuíca
Que já não tenho molho,
ritmo, nem nada…”
Em 1948, numa letra mais bem humorada, “Adeus América” (Haroldo Barbosa, Geraldo Jacques, Janet de Almeida) batia na mesma tecla:
“Eu digo adeus ao
boogie-woogie, ao woogie-boogie
E ao swing também,
Chega de hot, fox-trotes e
pinotes
Que isso não me convém.
Eu vou voltar pra cuíca,
bater na barrica, tocar tamborim,
Chega de lights e all rights e
de fights, good nights,
Isso não dá mais pra mim.
Eu quero um samba feito
só pra mim.”
Quando surgiu a bossa nova, o grande debate foi determinar até que ponto os brasileiros estavam “copiando” a música americana. Para os críticos mais ferrenhos, tudo beirava o plágio. A precursora “Copacabana” lembrava a melodia de “I’ll Remember April”; “Este Seu Olhar” era calcado na frase inicial de “Love Walked In”, do álbum Chet Baker with Strings; uma frase de “A Ballad”, de Gerry Mulligan, fora enxertada no “Desafinado”; o “Samba de Uma Nota Só” nada mais era do que a introdução do “Night and Day” de Cole Porter; o próprio Carlos Lyra, em seu mea culpa famoso, brincava com duas conhecidas canções americanas: “Indian Love Call” (do musical Rose Marie) e “You Were Meant For Me” (do filme Cantando na Chuva).
A protofonia do Guarani
“Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim,” rezava a letra, mas o clima no estúdio era de “brigas sempre mais” que marcava a relação yin/ yang entre João e Tom. Foram várias sessões tumultuadas e a data que entrou para a História foi a do take definitivo de “Chega de Saudade/Bim-bom”, 10 de julho de 1958. Um dos focos da confusão foi a exigência de João de ter quatro homens na percussão: Milton Banana (bateria), Rubens Bassini (bongôs), Juquinha (triângulo) e Guarany (caixeta). Tudo isto para uma música que durava nada além de dois minutos. E usava ainda uma orquestra completa. A inclusão de Guarany Nogueira (1928 – 1980) na gravação seminal da bossa nova revela a grandeza do seu talento. Principalmente se levarmos em conta o fato de que o curitibano, vítima da paralisia infantil, usava aparelho e só tinha movimento numa perna, um handicap terrível para um baterista. Em sua temporada carioca, além de brilhar nos círculos da bossa nova, Guarany freqüentou o circuito clássico e o maestro Eleazar de Carvalho o queria preparar para timpanista da Sinfônica do Rio. Hélcio Milito, do Tamba Trio, disse dele: “É um grande percussionista, talvez um dos melhores do Brasil. Se assim não fosse, João Gilberto não teria exigido sua presença para gravar várias faixas do seu primeiro LP.” A pesquisadora musical Marília Giller, em trabalho de 2007, O Jazz Curitibano dos Anos 1950, cita o pianista Gebran Sabbag, com quem Guarany tocou muitos anos no Ludus Tertius, completado por Norton Morozowicz ao baixo: “O Guarany merece muita consideração. Apesar de não poder dispor do pé esquerdo, ele tocava a melhor bateria de jazz de todos os tempos nesta cidade, e até fora dela, com muito suingue, muito balanço.” (RM)
Na verdade, ninguém copiava nada: o velho samba e o samba-canção começavam a se inserir no irreversível processo de modernidade do pós-guerra. O próprio jazz se cansara da fórmula repetitiva do swing e fazia a revolução do bebop — a improvisação sobre os acordes modificados de conhecidos standards e do blues. Atenta para a novidade, a rapaziada da bossa introduziu no velho samba as blue notes e passou a criar seus temas sobre a grade harmônica de canções conhecidas, tornando-as irreconhecíveis.
O que Jobim fez com o samba, Piazzolla fez com o tango e Michel Legrand fez com a chanson francesa; e outros menos conhecidos fizeram o mesmo mundo afora — lembrando que Brasil e Estados Unidos contavam ainda com o reforço da consangüinidade afro-americana. Os detratores da bossa puxaram do fundo da cartola um último trunfo: a bossa nova fora fabricada num estúdio de Los Angeles em 1953, e lançada no álbum Brazilliance, com o violonista brasileiro Laurindo Almeida e o saxofonista americano Bud Shank. Aquele híbrido, alegavam, era o protótipo da bossa nova. Brazilliance – Laurindo e Shank gravaram um segundo volume em 1958 – era um crossover brasileiro-americano, mas não chegava a ser bossa nova. A diferença principal era de natureza rítmica: e aí é que entra a contribuição notável da bossa, a sua “batida”. Na bateria elástica de Milton Banana, no violão minimalista de João Gilberto, nas notas respingadas do piano de Jobim — aquela era a grande viagem do balanço que nenhum gringo conseguiria jamais copiar.
Começa aí a segunda parte da história e participei dela no melhor estilo Forrest Gump. Inicialmente em Curitiba, meados dos anos 1950, na redação da Gazeta do Povo, ponto de encontro das almas perdidas da cidade, saindo para noite com Raul de Souza — o Raulzinho da banda da Base Aérea do Bacacheri, com seu trombone de pisto, dando canja pelos dancings e boates; adorando o piano de Gebran Sabbag, com seus ecos de Tatum, Cole e Garner; ouvindo o vibrafonista e acordeonista gaúcho Breno Sauer no La Vie en Rose; e um estranho cantor de boleros de Itaiópolis (SC), chamado Airto Guimorvan Moreira. Raul, Breno e Airto em pouco tempo seriam jazzistas famosos nos EUA. Nas minhas incursões cariocas ouvi certa noite num apartamento de Copacabana um garoto de Niterói que era uma fera do piano: Sérgio Mendes em pouco tempo ficaria milionário nos EUA. Nas jam sessions dominicais na boate do Hotel Plaza, ouvia os irmãos Castro Neves. Em São Paulo, na boate do Hotel Comodoro, curtia o bop esperto dos irmãos Peixoto, Moacyr (piano) e Araken (trompete); na Baiúca, ficava colado ao piano de Dick Farney; havia ainda o João Sebastião Bar, sucursal paulista do Beco das Garrafas.
Pouco depois, em Londres, eu vivia a emoção de comprar em primeira mão os álbuns Quiet Nights, de 1962, com Miles Davis e a orquestra de Gil Evans, que incluía “Corcovado” e o velho samba-canção “Aos Pés da Cruz”; e Getz/Gilberto, de 1963 (que fez de “Garota da Ipanema” um hit internacional e de Astrud Gilberto uma nova diva do cool jazz). Eram tantos lançamentos que produzi um programa semanal no Serviço Brasileiro da BBC chamado Jazz-Samba, o nome que os americanos deram à sua apropriação da bossa. Na onda de discos, destacavam-se o do flautista Herbie Mann e o do veterano saxofonista Coleman Hawkins; ambos estiveram no Brasil em 1961, na temporada do American Jazz Festival, um grupo itinerante patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA, que viu no jazz um arma de propaganda anticomunista nos anos da Guerra Fria. Os brasileiros retribuíram com o concerto do Carnegie Hall de Nova Iorque em 1962, que, apesar das intrigas da oposição, ajudou a consolidar a penetração da bossa nos Estados Unidos.
Àquela altura, o jazz vivia uma crise de identidade e de mercado, por conta da explosão do rock e da beatlemania. Na bossa, muitos jazzistas encontraram uma nova linguagem e um novo filão comercial. Muitos daqueles que insistiram no discurso radical do free jazz ficaram sem ouvinte e sem emprego. Moral da história: a bossa nova salvou da extinção o jazz, de que era acusada de ser uma cópia. Caberia até uma paródia da letra de Carlos Lyra: “Pobre do meu jazz/ Volta pro Harlem e pede socorro onde nasceu (…) Vai ter que se virar pra poder se livrar/ Da influência do samba.”
* Curitibano, Roberto Muggiati começou na Gazeta do Povo em 1954, estudou Jornalismo em Paris, trabalhou na BBC de Londres, foi editor das revistas Manchete, Veja e Fatos e Fotos. É autor dos livros Mao e a China (1968) e Improvisando Soluções: o Jazz como Estratégia para o Sucesso (a sair em 2008), entre outros títulos.