PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
Rádio Educadora de Piracicaba AM 1060 Khertz A Tribuna Piracicabana
Sábado das 10 ases 11 Horas da Manhã Publicada ás Terças-Feiras
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
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(11/JUNHO/2006)
Entrevistado: Reverendo Ricardo Gomes Guttiérrez
O trabalho voluntário é diferente do trabalho pago, características que o tornam especial. Os voluntários têm uma forte motivação pessoal, a qual produz um grande impacto no beneficiário. A Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho (Nos países islâmicos, o símbolo das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha é substituído pelo do Crescente Vermelho, a bandeira branca com uma lua crescente em vermelho) formam a maior organização de Voluntariado no mundo. Para Ruth Cardoso (falecida recentemente), não é preciso pedir licença a ninguém para ser voluntário. Cada um pode olhar ao redor e descobrir uma maneira de agir para o bem comum e para o desenvolvimento de sua comunidade. Uma ação voluntária pode começar muito antes do que se pensa. Ela tem início, muitas vezes, ainda na infância quando começamos a tomar consciência de algumas atitudes que podem contribuir para melhorar a vida em comunidade, preservar o meio-ambiente ou ajudar a reduzir as desigualdades sociais. Não há fórmulas nem modelos a serem seguidos. Alguns voluntários são capazes, por si mesmos, de olhar em volta, arregaçar as mangas e agir. Outros preferem atuar em grupo, juntando os vizinhos, amigos ou colegas de trabalho. Por vezes é uma instituição inteira que se mobiliza, seja um clube de serviços, uma igreja, uma entidade beneficente ou uma empresa. O Reverendo Ricardo Gomes Guttiérrez atua como voluntário em um patamar acima da compreensão humana. Faz parte do seu currículo imagens que retrata a mais profunda miséria, degradação, desespero, de enormes massas disformes em seu conteúdo e aparência. O cheiro da morte enoja, dá vômitos. As mutilações físicas e morais deixam seqüelas físicas e cicatrizes psicológicas. São situações extremas, onde o voluntário leva uma única certeza, a chance da sua própria sobrevivência física é tão remota como as das vítimas que vai servir. Dr. Ricardo foi assediado pela chamada grande imprensa, pelo fato de ser um dos poucos brasileiros presentes em algumas ocasiões, inclusive em locais aonde a imprensa, por motivos de segurança, foi impedida de chegar. Respeitando os princípios éticos assumidos, só agora, ele descreve, com exclusividade, o que é ser voluntário, não para se orgulhar dos seus feitos, mas para agradecer todos que o apoiaram espiritualmente, e á graça recebida do Deus a que ele serve e confia.
Reverendo o senhor pode fornecer alguns dos seus dados pessoais? A começar pelo nome completo. (risos)
Meu nome é Ricardo Gomes Guttiérrez, nascido em Uberaba, Minas Gerais em 12 de junho de 1962. Morei em Uberaba até os 16 anos de idade, por benção de Deus consegui passar no primeiro vestibular que prestei na Fuvest. Mudei para São Paulo para fazer a faculdade de odontologia na Unesp em Araraquara. A principio morei em uma pensão, logo me mudei para uma república que ficava em frente ao Diretório Acadêmico da faculdade. Formei-me em 1983. Sou filho de João Gomes Guttiérrez, já falecido e minha mãe Irenides Oliveira Guttiérrez, ela ainda mora em Uberaba. Meu pai tinha escritório de contabilidade, e minha mãe sempre foi dona de casa. Tenho uma irmã mais velha, com 47 anos, foi professora da Usp, hoje ela ministra mais cursos fora do Brasil. Outra irmã trabalha em Belo Horizonte, no Tribunal Regional do Trabalho. Tenho um irmão que é médico, mora em Santa Catarina, dedica-se á especialidade de ultra-som, ressonância. Hoje Moro em Santana de Parnaíba. Sou casado, minha esposa Vera é protética. Temos cinco filhos. Três são nossos de sangue. Estamos com um rapaz em casa, que é timorense, chama-se Valente Simões. Ele tem 30 anos de idade. Ele sofreu uma infecção do dente canino, o abscesso drenou pela glândula lacrimal, inchando a pálpebra, nariz. Em plena guerra não era possível tratar, seus pais morreram, ele espremeu para drenar o abscesso, houve sangramento, a mosca varejeira depositou ovo no local do ferimento. Ele teve berne. Isso resultou em uma deformidade facial expressiva. Sua vinda foi para tentarmos um transplante de face, que não foi viável. Após ter passado por 22 cirurgias, estamos refazendo a pálpebra onde é um buraco enorme. Metade do nariz com aba nasal sumiu. Atingiu os lábios inferior e superior até o masseter, ficando com os dentes todos expostos. Uma infecção com dor insuportável. Ainda deverá passar por umas cinco ou seis cirurgias. Ele quer voltar para o Timor. Temos o filho João Ricardo que está morando com a avó em Minas Gerais, fazendo cursinho. A Raquel é a filha do meio. O caçula é o Davi. A Zípora é filha de um amigo nosso de Minas.
Qual é a religião que o senhor professa?
Sou da Igreja Presbiteriana do Brasil. Somos evangélicos. Fui criado em igreja católica, quase fui padre, estudei no Colégio Diocesano. Na época da faculdade, comecei a freqüentar um grupo de estudos bíblicos na faculdade. Ali eu entendi a mensagem do evangelho, o ponto fundamental da palavra de Deus.
O senhor tem consultório próprio hoje?
Tenho. Em Alphaville. Sou dentista especializado em cirurgia Buco-Maxilo-Facial, faço desde cirurgia oncológica na cavidade bucal, ou periférica, cirurgia ortognática de correção deformidades severas ou não.
Quem o convoca para os serviços voluntários?
Financeiramente eu não ganho nada com o trabalho voluntário. Ás vezes eu faço dívidas! Convite vem de todos os lados. Sou dentista da família de um representante do corpo diplomático da Indonésia. Por ocasião da tragédia do Tsunami ele me convidou. Entendi que devia seguir para contribuir nesse trabalho. Quando estava já na Indonésia, dentro de um avião estava um japonês. Conversávamos á respeito das missões que já tínhamos realizados, até que ele me perguntou: “-Você trabalha para qual empresa?” Eu disse que tinha meu consultório particular em São Paulo. Eu havia saído com destino á Indonésia para prestar auxílio voluntário e deixei o consultório fechado. Ele não se conteve e perguntou: “-Mas como assim? Quem o patrocina?” Respondi que estava fazendo dívida para ser paga no período de um ano! Ele me disse: “-Sabe que o seu passe lá no Japão é quase igual ao de um jogador de futebol?” Disse-lhe: “-Como assim?” Ele então me respondeu que era funcionário da Mitsubishi, as pessoas não compram mais carros porque ele tem um farol arredondado, farol quadrado. A tecnologia está muito nivelada. No Japão ao adquirir um carro ou uma moto, o comprador consulta o site da fábrica, para ver se a marca é sovina, só quer saber de ganhar dinheiro. As empresas que apóiam trabalhos sociais, não pensam em tornarem-se o Faraó, dono do mundo! Esse é o fator que faz a concorrência quebrar! Ele me disse que estava em missão humanitária, e que isso constava no site da empresa! Esse é o fator decisivo para o consumidor comprar ou não aquela marca. No ano 2000 tive a oportunidade de conversar com a Professora Ruth Cardoso. Ela também fez a mesma pergunta para mim, quem estava me patrocinando? Eu disse que havia feito uma faculdade paga pelo governo, e nada mais natural do que devolver essa benção que recebi! Fui convidado para ser um dos diretores do Hospital Presbiteriano de Beirute, e estou quase aceitando!
O que o senhor acha a respeito da empresa patrocinar um voluntário com objetivos de ganhar mercado?
Boa pergunta! Temos que estar cientes de que não temos o controle do nosso futuro. No dia em que estive no Timor não morreu ninguém. O país estava em guerra, em estado de sítio, o exercito na rua, tinha toque de recolher, nunca vi tanta metralhadora, tanque de guerra, helicóptero, todos preparados para um contra-ataque da Indonésia que queria reconquistar o Timor, porque outras ilhas também queriam independência. A Indonésia achava melhor sufocar, pegar novamente o Timor para que os demais não tivessem o mesmo impulso de liberdade. Eu estava lá, não me aconteceu nada. Enquanto isso aqui no Brasil meu protético foi baleado. Outras pessoas morreram Risco de vida corre-se em qualquer lugar.
Quantos idiomas o senhor fala?
Português! (muitos risos). O resto eu engano! É uma boa pergunta. A língua na Indonésia é uma das coisas mais fáceis de aprender. Conheci uma moça que em 3 meses estava falando fluentemente. É uma língua que não tem o plural! A conjugação verbal é mais simples do que em inglês. Eu ás vezes falava em inglês, que é pior que o falado por eles! Fui aprendendo como dizer: Abra a boca. Onde está doendo? Quantos anos você tem? Lembro-me de que um dia disse á uma mulher: “ Barapá umur kamur?” Ela fez uma expressão de quem diz “Heim?” Repeti novamente, seguido pela mesma expressão dita por ela já com confiança. Quer dizer: “Você está com dor?” Ela abriu a boca, e pude fazer o procedimento correto. Quando eles percebem o nosso esforço para falar a língua deles, simplesmente eles vibram, amam com isso! Se tratarmos as pessoas com amor, recebemos amor e confiança de volta. São pessoas que estão sendo manipuladas de uma forma impiedosa, para tornarem-se fanáticos, mujahedins, homens-bomba. Se os Estados Unidos parassem de mandar soldados e mandassem missionários, médicos, voluntários para auxiliar essas pessoas, com certeza iria conquistar o amor, a simpatia desse povo, que com guerra e mortes não consegue.
Em quantos países o senhor já esteve?
Já nem sei mais! Acho que estive em cerca de 20 países. O último foi no Senegal em Thiès, Dakar. Fui lá para ajudar pessoas que mantém orfanatos comandados por brasileiros. É um país onde até hoje pratica a escravidão e o trafico internacional de crianças. Lá existem os marabus, são homens que vão á Guiné Nissau, Mali, Niger. Falam aos pais que doe seus filhos para eles os ensinarem, proporcionando-lhes um futuro melhor. Assim eles trazem crianças, de até 4 anos de idade. Dakar deve ter aproximadamente um milhão e meio de pessoas, cerca de quatrocentas mil crianças ficam perambulando pelas ruas pedindo esmolas! Os marabus as colocam esmolando, estabelecem o valor a ser arrecadado e caso não seja atingido a criança é espancada. Morrem muitas crianças. Eles praticam a infibulação que são as mutilações genitais (castração) de meninas. Muitas meninas morrem das complicações decorrentes.
O senhor tem um método pessoal de comunicar-se em cada país que vai trabalhar?
Eu transmito o que eu ouço. Depois escrevo. Tenho uma lista de termos praticados em cada localidade. Quando vou á um país, digo: “Escreve aqui.” No Senegal fala-se o francês. Eu não falava nada de francês. Após 30 dias descobri que o francês é como espanhol, só que piorado! É tão fácil falar! Eu moro em um bairro bem abastado em São Paulo. Quando você vai á casa de uma pessoa, ele quer mostrar a arquitetura da casa, os carros. Tem um “coitado” que tem seis carros da marca Ferrari na garagem! Quando você vai á casa de uma pessoa pobre, o que tem de maior valor é a comida! Ao chegar, caso seja convidado para comer significa uma honra que é difícil imaginar. Ele está dando aquilo que para ele tem o maior valor: a comida! Têm cada coisa a que somos obrigados a comer! Come-se primeiro e depois se pergunta o que era aquilo! Falar a língua deles é um grande fator de aproximação e amizade. Já comi anta, macaco, paca, jacaré, cobra, fígado de cachorro, tem coisa que até hoje nem sei o que era.
Na Indonésia, quando ocorreu o Tsunami, qual era a alimentação do senhor?
Meu estômago é como de avestruz! A gente comia o que tinha. O fedor de cadáver ficava impregnado na roupa, no corpo, no cabelo. A tragédia teve dimensões até difíceis de serem contabilizadas. Eu não comia nada que tinha proteína, pois sabia que não iria agüentar. Comia mais amido. Havia comida enviada pelo mundo inteiro. É impossível descrever o ambiente. As vezes o próprio pessoal que estava assistindo aos pacientes, muitas vezes não queriam nem comer, só choravam. Mães que saiam gritando procurando pelos filhos. Dia e noite permanecia aquela angustia. Havia pessoas que queriam morrer. Atendi a um senhor que tido saído para viajar, quando voltou ás quinze pessoas da sua família haviam morrido. Tive que dizer á uma enfermeira, no caso de ela não comer teria que embarcar de volta no primeiro helicóptero que chegasse.
Quantas ilhas têm a Indonésia?
São cerca de 60.000 ilhas. É o país mais lindo do mundo. Fala-se 800 línguas dentro da Indonésia. São 150 vulcões em atividade. ( N.J. No inicio do século XVII os holandeses estabeleceram ali a colônia das Índias Orientais Holandesas. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Holanda perdeu sua colônia para os japoneses. Com o final da guerra, o então imperador indonésio Sukarno, tendo cooperado com os japoneses declara a independência da ilha. Em 1965 o general Suharto, tomou o poder depois de grandes massacres. O general foi reeleito 5 vezes). Quando os portugueses saíram do Timor o território foi anexado á Indonésia.