A Tribuna Piracicabana
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ESCOLA DE APLICAÇÃO
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Entrevistada: Else Ferraz Salém
Um dos privilégios da maturidade é trazer doces lembranças. Se lembrar é reviver, nada melhor do que lembrar-se dos bons momentos. São imagens guardadas na memória de cada um. Muitas vezes a pessoa é a protagonista principal. Também pode ser coadjuvante. E algumas vezes apenas assiste a um fato, sem intervenção direta. Saber viver cada etapa da nossa existência é uma arte. Um eterno descobrir-se. Se por acaso a idade traz algumas limitações físicas, naturais, também aguça outras, é a lei da compensação da mãe natureza. Certo dia, um casal deixou uma cidade do litoral paulista, onde vivia com o conforto que lhe era permitido. Escolheram Piracicaba para morar. Mais precisamente, o Lar dos Velhinhos, que lembra o Vaticano, pelo fato de ser uma cidade dentro de outra. Se o Vaticano fica encravado em Roma, a Primeira Cidade Geriátrica do Brasil fica inserida no coração de Piracicaba. Desfrutando de excelente saúde, uma disposição invejável, eterno bom humor, e um relacionamento extremamente harmonioso são notáveis o exemplo de vida de Else Ferraz Salém e Tércio Becker Salém, um casamento que perdura por 60 anos. Um casal de eternos apaixonados.
A senhora é paulistana?
Nasci em 3 de abril de 1926, na Rua Joly, no bairro do Brás. Naquele tempo bem em frente de casa ainda tinha lampião de gás. Um senhor chegava lá pelas seis horas da tarde, limpava lampião e acendia. Era gás de rua. Ele ia a pé de poste em poste. No dia seguinte ele mesmo apagava. É de uma época em que começo a lembrar de alguns fatos da minha vida, deveria ter uns 4 anos de idade. Meu pai Sethe Ferraz e minha mãe Gertrudes Hermel de origem alemã. Meu avô Virgílio Spindler Hermel nasceu no Rio Grande do Sul e minha avó da família Metzner Muller. A minha mãe, Gertrudes, aprendeu a falar português aos seis anos de idade, até então se comunicavam em alemão. Meus av´s tiveram treze filhos, sendo que a minha mãe era a mais velha. Após mudar-se para São Paulo, com o tempo passaram a usar mais a língua portuguesa como meio de comunicação. Os filhos mais velhos aprenderam a língua alemã. Os mais novos não. Minha mãe casou-se em 1 de junho de 1922.
Eles tinham algum propósito definido quando se mudaram para São Paulo?
Meu avô era do tipo que fazia de tudo. Moraram primeiro em Ibitinga, depois para Bauru, e finalmente para São Paulo. Ele exerceu as funções de fotografo, dentista, trabalhou com engenharia também. Meus costumavam dizer que as pedras de calçamento que existiam em Ibitinga, Bauru, Piraju eram todas obras realizadas pelo meu avô, como mestre de obra. Minha mãe durante uma semana ajudava a minha avó no trabalho de costura, outra semana ela ajudava meu avô no consultório dentário. Meu avô era ainda pastor evangélico.
A senhora foi paciente do seu avô?
Ele obturou alguns dos meus dentes. Até hoje tenho essas obturações. A cadeira era bem simples. O motor era movido conforme o movimento do pé do dentista sobre um pedal. Tinha que ter uma coordenação motora boa, além de trabalhar com as mãos nos dentes do paciente, tinha ainda que movimentar o motor com o pé. Meu avô era um homem enorme, muito alto, grande.
Os pais da senhora tiveram quantos filhos?
Seis filhos. Cinco mulheres e um homem: Maria Clara, Else, Odila, Jaci, Cláudio e Marila. Minha mãe ainda criou por uns três anos uma garotinha cuja mãe havia ficado doente, a Tirza.
A atividade do pai da senhora qual era?
Papai era pastor evangélico da Igreja Presbiteriana Independente. E era médico pediatra também. Ele estudou medicina e teologia em São Paulo. Era vontade do meu avô que ele fosse pastor. Da minha avó que ele fosse médico. Para contentar aos dois, formou-se nas duas profissões. Papai residiu por uns dois anos no bairro do Belém em São Paulo, depois se mudou para o Brás. Eu nasci na Rua Almirante Barroso. Meu marido Tércio nasceu na mesma rua. Quando eu tinha um ano de idade a igreja construiu uma casa para o pastor, e nessa casa papai morou quase até o fim da vida. Ele teve que mudar de lá porque a poluição do Brás estava prejudicando a saúde da minha mãe. Mamãe era muito ativa na igreja. Na família do meu pai tivemos sete pastores, o assunto no almoço era sempre sobre igreja.
A senhora estudou em que escola?
Com sete anos de idade fui estudar na Escola Normal Padre Anchieta, que ficava na Avenida Celso Garcia. Lá estudei até a quinta série. Eu queria estudar medicina, mas não deu certo, naquela ocasião teve a reforma Capanema. Na época faziam o pré e entravam para a faculdade. Eles terminaram os prés e criaram os colégios. Demoravam muito para criarem os colégios e o pré tinha acabado. Na ocasião eu não fiquei sabendo que estavam aceitando alunos da quinta série sem pré, sem nada. Bastava fazer o exame e entrar na faculdade. Fui fazer o exame para a faculdade de educação física, que também fazia isso. Entrei para a Escola de Educação Física de São Paulo, era do Departamento de Educação Física. As aulas práticas eram dadas no Clube Espéria, depois passou a funcionar no Estádio do Pacaembu, onde permaneceu por muito tempo até ser construída na Cidade Universitária a Escola de Educação Física. Sou da turma formada em 1944. (N.J. Em 1931, a Reforma Francisco Campos, chamada reforma Chico Ciência, complicou ainda mais as coisas, “dividindo o curso em duas partes, ou dois ciclos: o primeiro de 5 anos e o segundo, e complementar, ou colégio universitário, de dois anos. Na gestão do ministro Gustavo Capanema foi promulgada, em 9 de abril de 1942, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, também conhecida como Reforma Capanema. Por essa lei, foram instituídos no ensino secundário um primeiro ciclo de quatro anos de duração, denominado ginasial, e um segundo ciclo de três anos).
A senhora nadou no Rio Tietê em São Paulo?
Comecei a nadar com oito anos de idade. Havia o cocho no Rio Tietê, que era uma área cercada, não havia piscina no Clube de Regatas Tietê, isso foi em 1933 ou 1934. Depois que construíram a piscina aprendi a nadar com Sr.Lenk, pai de Maria Lenk. Ainda menina, quando o rio enchia o Sr, Afonso Simões, membro da nossa igreja, nos levávamos passear nas áreas inundadas, e fazíamos passeio memoráveis nas regiões alagadas.
Havia uma carência muito grande de professores de educação física naquela época?
Por ser uma disciplina relativamente nova, havia uma carência. A primeira turma formada em educação física em São Paulo foi em 1936. Era um grupo muito pequeno. Havia uma seleção rigorosa para entrar para a escola.
Como os alunos viam a adoção da educação física como matéria curricular?
Os alunos gostavam muito. Quando me formei era aplicado o método francês de pedagogia. Depois foi surgindo o método sueco, calistenia que se aplica na Associação Cristã de Moços. O método francês é uma aula de educação física bastante complicada. Tinha certa ordem de exercício que não poderia ser trocada. Diziam que quebrava o ritmo da aula. Havia uma alternância de exercício de braços, de pernas, de tronco. Havia uma preocupação muito grande com o plano de aula. Trabalhei por 10 anos na Escola de Aplicação que funcionava no Parque da Água Branca. (N.J. Criada oficialmente pelo decreto 10.307, em 13 de junho de 1939, a Escola de Aplicação ao Ar Livre Dom Pedro I só foi de fato instalada na cidade de São Paulo no dia 12 de outubro, durante as comemorações da Semana da Criança. Após os discursos da solenidade de inauguração, os alunos da Escola Superior de Educação Física “realizaram uma completa demonstração de educação physica, pelo método francês, official do governo da União” Fonte: Overmundo). Era uma escola do departamento de educação física, voltada para estudos sobre a educação física infantil, que não havia naquele tempo, e até hoje ainda é muito precária a educação física voltada á essa faixa etária.
Quantas professoras de educação física havia na Escola da Água Branca?
Eram 10 professoras de educação física naquela escolinha. Eu passei a trabalhar com a professora Maria Laura, de acordo com ela passei a fazer um trabalho inovador com as crianças. Depois disso passei a dar aulas sempre para crianças de 4 e 5 anos de idade, sempre na escolinha do Parque da Água Branca. Quando havia uma visita importante Adhemar de Barros a levava visitar a escola. Ele e Dona Leonor ficavam sentados ali, olhando as crianças bem pequenininhas. A Lúcia Mercandante era a professora, quando ela saiu, eu assumi o seu lugar. Passei a dar as demonstrações para as visitas do Dr. Adhemar de Barros. Dona Leonor sempre me dizia: “-Só sendo uma menina desse jeito para dar uma aula assim”. Ela e Dr. Adhemar eram pessoas muito simples. Tem uma passagem muito peculiar. O Dr. Adhemar de Barros era muito amigo do Oswaldo Miller da Silva, que era meu primo. Um dia eles estavam na praia de Bertioga, o Milton que era professor de educação física e médico e irmão do Oswaldo Miller da Silva, entrou no mar, com a noiva, chamada Hilda Zanini. O mar começou a puxar a Hilda não sabia nadar e o Milton não agüentou segurar a menina. Ele fazia sinal para a praia de que estava com dificuldade. Minha tia estranhou e disse: “-O que está acontecendo com o Milton?”. Um dos rapazes que estava junto disse: “-Eu vou ver.” Conseguiu chegar lá perto. O Milton falou para que ele segurasse a Hilda que ele estava exausto. Minha tia via o Milton indo embora, o mar puxando. Ela foi até a estrada e pediu socorro. Parou um carro. Quem desceu do carro? Adhemar de Barros ele já era governador. Ele conhecia minha tia. Disse á ela”- A senhora espere um pouco!”. Deu meia volta, foi para o porto de Bertioga, a lancha dele estava lá. Havia sido roubada do Porto de Santos algum tempo antes. Com a lancha Dr. Adhemar pegou a lancha, puxou o Milton pelos cabelos, e fez os procedimentos de primeiros socorros. O Adhemar de Barros era médico.
A senhora credita essa precariedade no ensino de educação física infantil á que fatores?
Acho que existe uma grande dificuldade nesse sentido. Quando me formei só havia 3 colégios do estado em São Paulo: Padre Anchieta, Escola da Praça (Caetano de Campos, na Praça da República) e o Colégio do Estado. Pouco antes de eu me formar, alguns poucos foram construídos em bairros isolados.
Em que ano a senhora passou a lecionar no Estádio do Pacaembu?
Foi em 1944. Eu estive na inauguração do Estádio do Pacaembu em 27 de abril de 1940, como participante do orfeon da escola Padre Anchieta. Eu era soprano.
A senhora freqüentava as lojas do centro de São Paulo?
Com 10 a 12 anos de idade eu ia para a cidade de bonde, para fazer as compras para a minha mãe. Tinha também um ônibus que ia do Brás até o Largo São Bento. Andava por todo o centro de Piracicaba. Cheguei a comprar na loja do Mappin que ainda era no hoje Largo do Patriarca.
Qual seu lazer preferido?
Eu era filha de pastor. Isso significava que havia restrições quanto a formas de lazer. São bastante rígidos. Nós vivíamos em uma comunidade um tanto quanto fechada. A igreja oferecia aos jovens partidas de pingue-pongue, patins na quadra de esporte, passeios, piquenique. Os meus colegas de colégio é que iam estudar em casa. Os estudos de grupo eram feitos em uma sala da igreja, que tinha um quadro negro. Era um ambiente de estudos muito bom.
Na época a igreja católica tinha laços muito fortes com o poder constituído. Havia algum tipo de descriminação aos não católicos?
Não cheguei a sentir muito isso. O fato de papai ser médico quebrou muitas barreiras, ele era muito querido no bairro todo. No Brás o Dr. Sethe era muito conhecido. Fiz uma poesia ao meu pai: “Tinha eu meus três anos; e da porta fascinada; olhava no consultório; de avental branco imponente; todas as tardes ele atendia aos seus doentes; e a nós pequenos era proibida a entrada no pequeno consultório; ou na grande sala ao lado. Eu, pequena, olhava fascinada, para aquele armarinho branco; com caixinhas coloridas de vidrinhos variados. E papai me perguntava: – Você quer alguma coisa? Eu dizia: – Uma caixinha, um vidrinho e um dinheiro. Papai então tirava do armário, uma caixinha, um vidrinho vazio e do bolso do colete é que vinha a moedinha: um tostão ou duzentos réis. Eu saía contente tendo em mãos o que julgava o mais rico presente. Os anos foram passando, e pelo meu aniversário, papai sempre perguntava: – Você ganhou uma caixinha, um vidrinho e um dinheiro? Sempre ganhava, quando faltava um ele completava. Os anos passam velozmente, e ainda hoje, velhinho, com um sorriso brejeiro, me pergunta: Recebestes uma caixinha? Um vidrinho? Ou um dinheiro? (N.J.: Poesia recitada de memória pela entrevistada).
Havia ensino religioso na escola?
Nós saíamos da sala de aula e ficávamos no pátio. Era dada essa liberdade de escolha. Um fato muito interessante foi o comentário de uma professora, que gostava muito de nós, ela dizia: “-É uma pena que vocês sejam protestantes!”. Em outra ocasião o diretor chamou algumas alunas á diretoria, quando olhei eram todas evangélicas, além de uma espírita. Estranhei a situação. Ele disse: “-Essa escola está sofrendo a ação de alunos que querem fazer greve, bagunçar com o colégio. Mas eu notei que neste grupo aqui eu posso confiar, e nós vamos fazer uma campanha de moralização da escola”. Ele era católico. Não houve discriminação religiosa.
Como era o uniforme da escola?
Era uma saia azul marinho, pregueada, plissada, blusa branca com o emblema do colégio, meia de cor branca, sapatos pretos. No grupo usávamos o laço de fita no cabelo. Era aquele bendito laço de fita enorme.
O pai da senhora trabalhou como médico durante o período de alguma epidemia em São Paulo?
Como médico ele trabalhou muito durante a gripe espanhola que grassou pela cidade. E na Revolução de 1932 ele trabalhou muito, mesmo não tendo ido á frente de batalha. Como éramos pequenos fomos com a minha mãe para a casa de familiares em Bauru.