O entrevistado do jornalista João Umberto Nassif de hoje é o professor Francisco de Assis Ferraz de Mello, que conta um pouco sobre sua memória na Esalq e da Piracicaba antiga.


Foto: Daniel Damasceno – Professor Francisco de Assis Ferraz de Mello: “Sou normalmente chamado por Chico”

Francisco de Assis Ferraz de Mello conserva a alma de um menino. Nascido em Piracicaba em 31 de maio de 1928, estará completando 82 anos de idade no próximo dia 31. Com seu jeito simples, sem o deslumbre dos que conquistam seu lugar ao sol, Chico Mello, como é carinhosamente chamado pela maioria de seus amigos, ilustra muito bem o poder da vontade e determinação do ser humano. É a testemunha viva da evolução de Piracicaba, desde os tempos em que a Avenida Carlos Botelho era apenas uma via em terra nua, cortando as chácaras existentes onde hoje é uma área nobre de Piracicaba. A Esalq ficava “afastada” da cidade. O calouro Chico Mello, para fugir dos trotes dados pelos veteranos, muitas vezes “cortou caminho” pelas chácaras existentes até chegar à sua casa próxima ao Rio Piracicaba. Duas presenças constantes em sua vida são o Rio Piracicaba e a Esalq. Em sua casa hospedou por muitos anos Felix do Amaral Mello Bonilha, o folclórico Nhô Lica. Chico Mello é professor titular aposentado pela Esalq, escritor, poeta, diretor do Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba, membro da Academia Piracicabana de Letras cujo patrono é Nelson Camponês do Brasil, do Clube dos Escritores. Uma característica muito própria de Chico Mello é ver sempre o lado positivo do ser humano, ele não se deixa levar pelos rótulos dados a determinada pessoa. O alcance da sua visão vai além, prefere ver as boas qualidades do indivíduo, de uma forma extremamente natural, equilibrada.

Meus pais Alcindo Almeida Mello e Zoraide Ferraz de Mello tiveram seis filhos, eu sou o segundo filho. O mais velho é o Dirceu, eu, Oroty, Ibraim, conhecido na cidade como Susso, Zenaide e Alfredo José. Meu pai era funcionário público estadual, trabalhava como Fiscal de Algodão. Ele visitava as áreas de cultivo de algodão, fiscalizava as fabricas que descaroçavam, desfibravam o algodão, na época havia diversas em Piracicaba. Ele era muito brincalhão, tinha um bom coração.

Sou normalmente chamado por Chico. Quando criança tinha o apelido de Nacho.

Estudei no Grupo Escolar Moraes Barros, fiz parte do ginásio no Externato São José, que funcionava no prédio onde mais tarde funcionou a Faculdade de Odontologia, outra parte do ginásio eu estudei no Colégio Piracicabano. Na Escola Normal Oficial, hoje Sud Mennucci, estudei o colegial.

Fui aluno de desenho, não cheguei a pintar. Isso foi em 1940. Nós íamos ao Seminário Seráfico São Fidélis.

Era o lazer da criançada pobre. Nunca viajei, jogava bolinha de vidro, virava pião, jogava futebol, tinha nosso timinho, era o Infantil Brasil. Não tínhamos uniforme, nem chuteiras. Apenas a bola! Jogávamos perto da cadeia, hoje Primeiro Distrito Policial. Em frente à cadeia moravam os soldados, os carcereiros. Eu morava ali, na esquina da Rua Vergueiro com a Rua São José. Apesar de reformada, a casa existe até hoje. Meu pai gostava de pescar. A minha infância passei junto ao Rio Piracicaba. Pescava no Vai-E-Vem, trecho do Rio Piracicaba entre a Rua São José e a Treze de Maio, uma extensão de uns duzentos metros, lá havia um bosque, que deu lugar a avenida.

Não, meu pai nunca deixou. Duas coisas que nunca fiz na minha infância: andar de bicicleta e nadar. Já adulto, comprei bicicleta para meus filhos, foi quando aprendi a andar de bicicleta!

O soldado descia a pé com a pessoa que estava sendo presa, e eu não me recordo de ter visto algum preso chegando algemado, eles acompanhavam a autoridade sem rebeldia.

Minha mãe teve que assumir sozinha a responsabilidade de criar os filhos, só que por motivos de saúde ela tinha muitas limitações. Eu não tinha nem trajes apresentáveis para ir à escola. Não tinha o material necessário para estudar, nem mesmo o básico exigido. Um professor de matemática vinha de São Paulo para lecionar na Esalq, exigia que os alunos usassem paletó e gravata, além de possuírem instrumentos como régua, esquadro, compasso, compatíveis com seu nível de ensino. Eu possuía esquadro, compasso, iguais aos utilizados nas escolas primárias, de pouca precisão. Fui proibido por ele de frequentar as suas aulas, quer pela minha vestimenta, quer pela falta de material adequado para acompanhar as suas aulas. Na época não havia a obrigatoriedade de frequentar as aulas. Eu realizei as provas desse professor, passei conquistando as notas necessárias, a nota média como dizíamos, sem ter que prestar os exames finais.

Um dia eu estava descendo do bonde na Esalq, um dos diretores do Centro Acadêmico, conhecido como Maia, disse-me: “Chico, o Centro Acadêmico vai dar uma bolsa de quinhentos cruzeiros por mês, se inscreva, mande uma cartinha que você ganha a bolsa”. Acho que eles já tinham conversado a respeito, meus colegas sabiam das minhas dificuldades. Ganhei a bolsa! É o que eu falo de vez em quando, o pessoal participa de concurso de beleza, concurso disso, daquilo. Eu entrei em concurso de pobreza e ganhei! Mais tarde Louis Clement, Diretor Presidente da Fabrica Arethuzina Boyes me deu uma bolsa, já de mil cruzeiros. Fui até o Centro Acadêmico e comuniquei que havia ganhado outra bolsa, passando a que eu recebia para alguém mais necessitado. Com a bolsa de estudo vivíamos eu e a minha família, na época meu irmão Susso já trabalhava. Em períodos de exames eu reunia a minha roupa e praticamente morava por 15 a 20 dias em um dos dois apartamentos situados no fundo da garagem, onde era a casa do diretor da Esalq. José de Mello Moraes, o Melinho, que foi diretor da Esalq por 25 anos. Eu era muito amigo do seu filho, José de Mello Moraes Filho.

Foi em 1953. O próprio Melinho, através do seu filho, me convidou para trabalhar com ele. Fui trabalhar no departamento de Química Agrícola, que funcionava no prédio existente até hoje. Isso foi em 1954. Ali fiz doutorado, livre docência. A Universidade se reestruturou, havia muitas cadeiras afins, que foram agrupadas, formando os departamentos existentes atualmente. Passamos a integrar o Departamento de Solos e Geologia, o primeiro chefe foi Eduardo Salgado, depois foi Guido Ranzanni. Em seguida Moacir Camponês foi o chefe do departamento, em seguida eu assumi a chefia, em seguida veio André Martin Louis Neptune, nascido no Haiti.

Não sigo nenhuma religião. Minha mãe era católica, meu pai era espírita.

Tenho uma profunda gratidão, foi onde tive a possibilidade de estudar, e eu sempre gostei de estudar.

Todos da carreira universitária: doutorado, livre docência, que é o concurso mais difícil da universidade, são três a quatro dias de provas. Enquanto você é doutor não pode dar aulas teóricas, apenas aulas práticas. O professor livre docente pode dar aulas teóricas. Não é todo mundo que gosta de dar aulas teóricas. O professor que é livre docente adquire a independência para pesquisa, sem tutela. Fui catedrático substituto. Cheguei à posição de professor titular. Os cargos de diretor de escola, reitor, envolvem fatores diversos, que vão além da carreira de professor. Tem que ter vocação especial para ocupar essas posições.

Gosto muito. Tenho três livros de poesias publicados. Depois que me aposentei publiquei sete livros.

Sei que ele era parente do meu pai, não sei precisar em que grau de parentesco. Minha mãe contava que três meses após ela e meu pai casarem-se, Nhô Lica apareceu em casa. Sentou, começou a bater um papo, como ele não ia embora arrumaram um lugarzinho para ele ficar, nunca mais ele saiu de casa!

Ele conversava bem, só que os assuntos dele giravam em torno de pedras preciosas, diamantes, às vezes ele falava trechos em francês.

Eu acho que ele nasceu assim. Tem algumas teorias. Recentemente me contaram uma delas, que ele tinha algum dinheiro, um viajante chegou a cidade, fez amizade com ele, e disse-lhe: “Você me dá esse seu dinheiro, vou para Minas Gerais e vou comprar pedras preciosas, trago, vendemos e ficaremos ricos”. Nhô Lica teria cedido o dinheiro para ele que nunca mais voltou. Isso não está escrito No meu livro sobre Nhô Lica.

Eu acho que ninguém sabe se foi. Quem poderia dizer alguma coisa a respeito seria o Padre Rosa, que já é falecido. Nhô Lica levava muitas pedras ao Padre Rosa, que talvez para não jogar fora ia colocando em algum canto. E deveria existir um funcionário que foi amontoando aquelas pedras. Durante a construção da Catedral falaram para pegar as pedras que o Nhô Lica trouxera e colocar junto ao concreto. Isso eu não sei se é verdade.

Frequentei sim. Era simples, mas bonito. As cadeiras não eram almofadadas. Eugênio Nardim dizia que a acústica era espetacular, ele tocava violino.

Eu nunca briguei na minha vida! Por que vou brigar? Nunca ninguém me ofendeu, sempre respeitei a todos. Todo mundo me quer bem, na escola sempre fui muito bem quisto. Um professor, já falecido, referia-se ao ambiente acadêmico como “aquele serpentário”.

Estou aguardando um dos meus dois filhos me ensinarem.

Leio jornais, revistas.

Já li muito.

Gosto muito de música popular. As músicas compostas pelo pessoal dos morros cariocas são filosóficas. Veja a música de Cartola, “As Rosas Não Falam”:

“Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão, enfim
Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar para mim
Queixo-me às rosas, mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai
Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhava meus sonhos
Por fim”

Na letra da música Cartola diz: “Que bobagem falar com as rosas, elas não falam”.

Gosto, eu assisti muito cururu no Teatro Santo Estevão mesmo. Meu pai gostava de cururu e me levava junto, ficávamos até as três, quatro horas da manhã.

Assisti muito e gostava. Cheguei a ver comício de Adhemar de Barros. Lembro-me que durante o comício havia um enorme balão de ar com propaganda dele, e alguém, provavelmente com uma espingarda Winchester atirou, esvaziando-a. Na sua próxima vinda a Piracicaba, Adhemar se lamentava: “Furaram meu balão!”. Adhemar de Barros dizia: “Sou barranqueiro do Rio Piracicaba”.

Íamos para a Rua do Porto, havia muitas chácaras onde apanhávamos frutas e comíamos. Havia as olarias. Era tudo chão de terra, não havia asfalto.

Não existia Jardim Europa, Cidade Jardim, nenhum dos outros bairros que existem hoje próximos à escola. Havia até uma olaria, por sinal de uma prima, da família Fessel. Meu tio, Luiz Dias Ferraz, tinha uma chácara onde hoje só existem residências. Na época em que eu fui calouro, fugia do trote dos veteranos, pulava as cercas das chácaras e ia sair na Vila Boyes. O trote era bravo, uma das tarefas era levar o calouro para fazer faxina nas repúblicas. Eu tomei pouco trote, corria muito bem! Ninguém me pegava. A Avenida Carlos Botelho era toda de terra. A noite não havia iluminação nenhuma. A Avenida Torquato Leitão era um caminho de terra entre as chácaras.

Fui com meu pai, quando ele viajava a negócios. São Paulo não era a loucura que é hoje. Foi lá que pela primeira vez vi camarão. Eu tinha uns 15 anos de idade.

Em toda a minha vida eu só tive três carros. O primeiro foi um Fusca, que mais tarde vendi e permanece em bom estado até hoje.

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