Entrevista Monsenhor Jamil Nassif Abib

Monsenhor Jamil Nassif Abib nasceu a 4 de março de 1940 em Canitar, Estado de São Paulo, que era denominada anteriormente como Fortuna, distrito do município de Chavantes. Canitar ficava na linha da Estrada de Ferro Sorocabana, entre Chavantes e Ourinhos. Filho primogênito de Tanus Abib, brasileiro, nascido em Lençois Paulista e Rosalina Nassif Abib, brasileira, nascida em Itapetininga, tiveram ainda os filhos: Jorge, Jalil e Jeanete.

Qual era a atividade profissional do pai do senhor?

Papai tinha uma casa de comércio, a semelhança de meu avô e meus tios. Meu avô, Miguel Abib, libanês, se estabeleceu nesse distrito de Canitar. Era casado com Nasha Abib Gandur Maluf, libanesa. Ambos tinham se casado no Líbano quando vieram para o Brasil já tinham uma filha, Lorice. Os registros de imigração normalmente registram a vinda dos espanhóis, italianos, portugueses.

Foi no período em que se divulgava mundo afora que no Brasil se achava ouro no meio da rua?

Há até uma história de um determinado imigrante que ao saber que no Brasil havia dinheiro na rua, desembarcando no porto de Santos, caminhando, viu uma cédula de dinheiro com valor significativo, trazida pelo vento, vendo aquela nota, chutou-a e disse à si mesmo: “ Ah! Vou começar a recolher dinheiro depois do almoço!”.

A imigração árabe foi distinta de outros povos?

Os árabes tiveram um tipo de imigração diferente, não vieram em blocos para trabalhar na agricultura. Eles vieram de forma independente, isso dificulta uma pesquisa sobre eles. Sei que minha avó e minha tia ficaram no Líbano quando meu avô veio para o Brasil, posteriormente elas vieram também. Os meus avôs tanto paterno como materno não foram mascates. Meu avô Miguel adquiriu uma fazenda, junto com meus tios, meu pai, trabalhavam ali, acredito que não ficaram por muito tempo com essa fazenda, também nunca descobri qual era a atividade agrícola ali praticada. Foi na época em que a terra não era cara, tinha havido a quebra do café de 1929. As fazendas foram desmembradas dos grandes cafezais. Junto com os filhos, meu avô estabeleceu uma casa de secos e molhados em Canitar. Em 1938 meu pai se casou, estabelecendo-se por conta própria. Ele fornecia para os colonos remanescentes das fazendas. Nessa época o café já não era o Ouro Verde. Aliás, Ouro Verde era o nome de um trem da Estrada de Ferro Sorocabana. Era o melhor trem da época. A região da média sorocabana desenvolveu-se ao redor da cultura do café. Meu pai montou essa loja porque ali no aglomerado urbano do distrito era onde ficavam os serviços, o pessoal vinha fazer compras ali nos finais de semana. Lembro-me que meu pai vendia e anotava em um livro, onde havia a página do interessado. Ele ia anotando, ao final do mês, quando as pessoas recebiam o salário, eles iam fazer o acerto no armazém. O armazém tinha de tudo, alimentos, roupas, tecidos, ferramentas. Ali havia um grupo escolar.

O senhor chegou a estudar nessa escola?

Foi onde estudei o primeiro ano, no Grupo Escolar de Canitar, a minha primeira professora foi Dona Maria José Fortes. Tinha uma igreja cuja padroeira era Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. O pároco vinha de Chavantes, a cuja paróquia Canitar pertencia, ou então algum padre de Ourinhos, distante oito quilômetros de Canitar.

O senhor foi batizado lá?

Fui batizado a 7 de setembro de 1940, com seis meses e três dias de vida, em Ourinhos. Fui batizado no dia em que meu primo fazia seu primeiro aniversário e meus pais comemoravam dois anos de casados. Naquela época os meios de transportes não eram tão fáceis como são hoje. Nós morávamos em Canitar, meu primo em Jacarezinho, onde morava a família da minha mãe. Acredito que o fluxo de pessoas era maior para Ourinhos do que para Chavantes.

O segundo ano escolar o senhor estudou em Canitar?

Fiz o segundo ano em Jacarezinho, distante uns 30 quilômetros de Canitar. Ia de trem até Ourinhos, de lá seguia de ônibus para Jacarezinho, apanhava o ônibus no pátio da Estação da Estrada de Ferro em Ourinhos. Eu ficava na casa dos meus avós maternos, minha avó chmava-se Labibe Nassar Sfeir e meu avô materno chamava-se Nassif Salomão Sfeir, também libaneses. Esse meu avô tinha uma fazenda em Jacarezinho e se estabeleceu com uma loja de secos e molhados.

Em que ano o senhor passou a estudar em Jacarezinho?

Em 1948 meus avós paternos já tinham vindo para Sorocaba, era um pólo de atração das pessoas que haviam perdido seu trabalho com a quebra do café. Sorocaba era chamada de “Manchester Paulista”, porque ela tinha indústrias. A mão de obra vinha com o objetivo de trabalhar nessas fábricas. A cidade inchou, é uma cidade de um passado rico, no passado do tropeirismo o foco era Sorocaba, onde havia feira de muares. Com o desenvolvimento da indústria e a febre amarela que abateu-se sobre a cidade no final do século XIX fez com que a cidade estagnasse, enquanto São Paulo crescia. As indústrias de Sorocaba tinham seus escritórios em São Paulo, o dinheiro corria em São Paulo. Lá era apenas o parque fabril. Sorocaba ficou marginalizada e começou a inchar em termos de população, apenas com a construção da Rodovia Castelo Branco, que deveria ser uma auto-estrada, Sorocaba-São Paulo, na sucessão do governo estadual mudou seu trajeto, passando entre Itu e Sorocaba, prolongando-se na direção do Oeste. Tanto que era chamada de Auto-Estrada do Oeste, depois é que colocaram o nome de Castelo Branco. A partir daí Sorocaba retomou seu desenvolvimento. A cidade mudou seu perfil. Meu avô estabeleceu-se em Sorocaba, passou a multiplicar seus estabelecimentos, de uma loja passou para duas, três, os filhos foram casando, montando sua própria loja. Logo meu pai seguiu a trilha, uns dois ou três anos depois meu pai veio para Sorocaba onde montou uma loja só de tecidos e miudezas. Devo muito a Jacarezinho, cresci e guardo boas recordações do tempo em que morei lá e das visitas que fazia em companhia da minha mãe para nossos familiares residentes naquela cidade. A minha primeira comunhão foi feita em Jacarezinho a 1 de janeiro de 1948.

O senhor foi coroinha?

Fui coroinha na igreja Nossa Senhora da Assunção, catedral de Jacarezinho, a família da minha mãe era muito religiosa, tinham um poder aquisitivo maior, estudaram em colégios internos de São Paulo. Meus avós maternos mantiveram seus filhos internos em São Paulo.

Ajudava as missas logo pela manhã?

Tinha que pular cedo, porque ganhávamos um cartãozinho que proporcionava um prêmio no final do mês, geralmente livros, doces. Havia sempre um prêmio para os mais assíduos. A batina do coroinha era vermelha com roquete branco.

Coroinhas estão sujeitos a cometerem gafes em publico, o senhor teve algum fato marcante?

O meu terror era pegar o turíbulo, tinha que mantê-lo alto, ajoelhávamos com o turíbulo, como era criança, às vezes a mão abaixava, o turíbulo batia no chão e derrubava as brasas. Aconteceu que uma vez derrubei as brasas em cima do tapete, a solução foi pisar em cima para acabar com a combustão. Esse fato deu-se em Sorocaba, eu estudava no Grupo Escolar Antonio Padilha. Sempre freqüentei igreja por conta da tradição da família da minha mãe.

Qual igreja o senhor freqüentava em Sorocaba?

Em um primeiro momento passei a freqüentar a capela do Seminário Diocesano, a Capela de São Carlos Borromeu, hoje é sede de paróquia. São Carlos Borromeu foi cardeal de Milão na época do Concílio de Trento. Eu freqüentava o seminário, inclusive estudava o catecismo, mesmo tendo feito a primeira comunhão continuei a estudar o catecismo. A preocupação com a educação religiosa continuou. Foi freqüentando o catecismo, junto das Irmãs da Divina Providência que cuidavam da parte de serviços do seminário que passei a alimentar essa idéia de entrar para o seminário.

Com que idade despertou a vocação do senhor para a vida religiosa?

Devia ter de 9 a 10 anos. Naquele tempo era assim, não se aceitava no seminário pessoas com mais idade. Fiz paralelamente meus estudos no terceiro e quarto ano primário, o curso preparatório, que era feito em escola particular, antes de fazer o exame para entrar para o ginásio. A professora era Dona Julica Bierrenbach, ela é da família do almirante-de-esquadra Júlio de Sá Bierrenbach. Fiz o prepraratório lá, era um grupo que se reunia no quintal da casa dela. As vezes na sala. Lembro-me de alguns dos alunos, entre eles Jaime Pinsky, hoje proprietário de uma editora, ele tinha um primo Antonio Kahn que também freqüentava as aulas, assim como Miriam Pavlovsky. Logo depois entrei para a primeira série no ginásio Ciências e Letras encostado na igreja do Mosteiro de São Bento, que tornou-se a igreja que passei a frequentar, continuando a ser coroinha, nessa altura meu pai mudou-se da primeira casa para uma casa mais central. Quando eu estava com uns 10 anos, o pessoal do seminário vizinho a nossa residência anterior, seu reitor que depois foi bispo de Bragança Paulista, Antonio Misiara, foram a casa dos meus pais para pedir a licença para que eu entrassse para o seminário. Encontraram oposição, mais do meu pai do que da minha mãe. Continuei insistindo, já no primeiro ano de ginásio, morando perto do Mosteiro de São Bento, fui aposentando a idéia de entrar no seminário. Quando eu ia começar a segunda série, um dia após o almoço, era no começo de março, meu pai questionou-me a queima-roupa: “- Esse negócio de você ir para o seminário, se for para ir, vamos já! Se não for já, não irá mais!”. Rapidamente pensei: “ Se eu for, posso sair, se eu não for não irei mais. Então eu vou!”. Na mesma hora ele me levou ao Seminário Diocesano, já tinha começado o ano letivo. O reitor me aceitou extraordináriamente. Comecei o ano escolar fora de época. Permaneci no seminário até 1958, fiz o ginásio e o correspondente ao colégio. Naquela época os cursos de seminário não eram reconhecidos pelo governo. Não tinhamos diploma, era coisa interna do seminário. Tinhamos visitas dos parentes apenas uma vez por mes, no domingo a tarde, mesmo quem como eu, morava em Sorocaba.

Como eram os dormitórios?

Eram três salões grandes, divididos por faixas etárias: pequenos, médios e grandes. Havia um diretor de disciplina que tinha um quartto no mesmo andar.

A que horas os seminaristas levantavam-se?

As cinco horas da manhã. Tinha meia hora para higiene pessoal. Banho era tabelado, tinha turmas para tomar banho, terça e quinta por exemplo, sempre banho frio, nem pensar em banho quente. Em Sorocaba punhamos batina na quarta série, usavamos permanentemente, era preta com uma faixa azul. Éramos os “embatinados”, até para jogar futebol jogava-se de batina, com chuteiras. Usava-se uma batina mais rota. A noite, quando íamos dormir, havia um horário de apagar a luz, quem tinha batina só podia tirá-la após apagarem-se as luzes. De manhã, ao bater o sinal para acordar, na cama mesmo o seminarista punha a camisa, puxava a batina e levantava-se de batina. A disciplina era muito rígida. Desciamos do dormitório e não podia mais subir durante o dia, a não ser que fosse horário de banho.

Não se tomava banho todos os dias?

Não, eram tabelados os dias, dois ou três dias por semana. A não ser quando tinha jogo de futebol. Essa disciplina rígida acaba levando a ter muito método, todos os colegas que deixaram o seminário, e os encontrei já adultos, comentavam: “- A melhor coisa que o seminário me ensinou foi disciplina!”.

Como era a piscina do seminário?

Nós íamos a piscina do Scarpa. Havia o Baixadão do Scarpa, onde existia uma associação esportiva, nós uságamos uma vez por semana a piscina deles. Desciamos em fila pelas ruas da cidade, os que tinham batinas e os que não tinham , era um espetáculo, imagine aquela turma, chegamos a ter 200 seminaristas, todos enfileirados. As vezes íamos a passeio em alguma chacara, o trajeto era feito a pé. Da mesma forma íamos para as celebrações na catedral.

O curso superior o senhor realizou aonde?

Em 1959 fui para o Seminário Maior em Aparecida do Norte, na época não havia seminários como temos hoje, pequenos seminários. Havia grandes seminários, para 200 alunos. Permaneci em Aparecida do Norte por três anos cursando filosofia. Em 1962 vim para São Paulo, no Bairro do Ipiranga, para fazer Teologia. Em 1964 o país vivia um período de radicalização ideológica que influenciou todos os setores da sociedade. A Igreja estava vivendo a experiência da Ação Católica, dividida por segmentos: Juventude Agrária Católica – JAC; Juventude Estudantil Católica – JEC; Juventude Independente Católica – JIC; Juventude Operária Católica – JOC; Juventude Universitária Católica – JUC. Ação Católica teve um desenvolvimento que vem vindo, isso vem amadurecendo e se desenvolvendo desde o Papa Pio XI, já no período da Segunda Guerra Mundial. Havia na Igreja uma fermentação ideológica muito forte. Estávamos em uma época de mudanças, para se dar um exemplo, em Aparecida fazia muito calor, os seminaristas fizeram um pedido ao reitor, que fosse possível usar batina branca, atraia menos calor. Aconteceu o impensável, o reitor disse que podíamos tirar a batina. Ninguém jamais tinha pensado nisso. Passamos a usar batina só em cerimônias. Quando passamos a estudar Teologia em São Paulo, voltamos a usar batina todos os dias de manhã, a tarde e á noite. Conheci Frei Beto, que me contou em 1963 que iria entrar para o seminário no ano seguinte, ele era estudante católico, do movimento JEC.

No período de movimentação ideológica houve transferências de seminaristas?

Houve, inclusive eu e o Padre José Maria de Almeida que foi vigário da catedral de Piracicaba fomos para junto dos Claretianos em Curitiba, freqüentando regularmente até terminar o curso. Dom Aniger, Bispo de Piracicaba, foi até Curitiba, nos procurou e nos animou a vir para Piracicaba. Em 1964 vim pela primeira vez para Piracicaba, aqui passou a ser a minha diocese. Fui ordenado sacerdote na Catedral de Piracicaba no dia 09 de janeiro de 1966. Fui para Rio Claro, onde permaneci por três anos, fui como ajudante do pároco, com a incumbência de fundar uma nova paróquia, a de Bom Jesus, que foi fundada em 1966, fui o primeiro pároco do Bom Jesus, no inicio de 1969 fui transferido para Santa Maria da Serra, regularizei o meu curso de filosofia, me inscrevi para fazer tese em história na faculdade de Rio Claro. Acabei sendo aceito como historiógrafo em caráter precário do Museu Paulista. Quem estava lá na época era um piracicabano, Mário Neme.

O senhor é acadêmico de diversas instituições. Pode citá-las?

Sou acadêmico do Instituto Histórico de São Paulo, do Paraná, de Santa Catarina, Sorocaba e Piracicaba, da Academia Piracicabana de Letras.

O senhor estava seguindo uma carreira universitária?

No período em que permaneci em Santa Maria da Serra, pelo fato da paróquia ser assistida aos finais de semana, aproveitei o tempo útil para trabalhar no Museu do Ipiranga, pertencente a USP. Eu estava agregando créditos para pós-graduação na USP, fiz até exame de qualificação. Tive que interromper para prestar assistência a minha mãe que estava muito doente e acabou falecendo. Dom Aniger me transferiu de Santa Maria da serra para a Paróquia de São Dimas, em Piracicaba. A minha decisão é ser padre e não a de fazer carreira universitária. Após dois anos na Paróquia de São Dimas, fui removido para Rio Claro como Vigário Episcopal, foi em 1975, tinha um trabalho de coordenação da área que compreendia Cascalho, Cordeirópolis, Santa Gertrudes, Rio Claro toda, Ipeúna, Corumbataí, Analândia, além da minha paróquia de São João Batista. Cheguei a cuidar de cinco paróquias ao mesmo tempo. Permaneci em Rio Claro por 31 anos. Em 2006 vim como pároco da Igreja de Santo Antonio, Catedral de Piracicaba.

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