PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 05 de janeiro de 2019.

Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:

http://blognassif.blogspot.com/

http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADOS: ESTHER MARIA ZEN BRASIL
                   E CARLOS ALEXANDRE BRASIL


                               

A variedade e a qualidade cultural existente em Piracicaba é riquíssima. São tantos talentos, diversificados, que torna-se difícil até mesmo conhecer a todos. Temos vagas impressões desse inumerável conjunto. José Carlos de Godoy Brasil, o “Zé Carlos” ou “Bedas” como era popularmente conhecido tornou a cidade de Piracicaba mais alegre, com inúmeras apresentações musicais que realizou, inclusive nas cidades da região. Este mês de dezembro de 2018 José Carlos silenciou seus instrumentos. Sua presença marcante deixou um vácuo que só o tempo pode superar. Sua esposa Dona Esther Maria Zen Brasil, amparada por um de seus filhos, Carlos Alexandre Brasil, revelou um pouco da história de lutas e conquistas que viveram juntos. Entre muitas glórias, a grande lição é a força do poder do amor. Zé Carlos embora não aparentasse, sofria de uma doença crônica e incurável, o alcoolismo. Só a fé e o amor de Dona Esther, que movimentou todas as barreiras, fez com que Zé Carlos, ao ser pai do primeiro filho, Carlos Magno, deixasse de sequer experimentar uma bebida e continuasse a fazer o que gostava: exercer a música, animar inúmeros bailes, ingerindo apenas água. O amor substituiu a doença do alcoolismo.  Uma verdadeira lição de vida. José Carlos de Godoy Brasil teve um atuação marcante na cidade de Piracicaba. Seu pedido antes de falecer foi de ser cremado e ter suas cinzas dispersas no Rio Piracicaba. Na semana passada a família cumpriu sua última vontade. Reunida, com todo o respeito, entregaram às águas do Rio Piracicaba a última lembrança do ente querido. A cremação é um dos processos mais antigos praticados pelo homem. Em algumas sociedades este costume fazia parte do cotidiano da população os gregos, por exemplo, cremavam seus cadáveres por volta de 1.000 A.C. No Japão, a cremação foi adotada com o budismo, em 552 d.C, Há religiões que não recomendam a cremação. Os cemitérios, que à primeira vista não oferecem riscos, também podem causar danos à natureza e à saúde da população. Foi o que demonstrou um estudo sobre contaminação de águas subterrâneas por necrópoles realizado pelo engenheiro civil e doutor em Hidrogeologia, Bolivar Matos, A possibilidade de contaminação se relaciona, além das chuvas, ao tipo de solo no qual está o cemitério. Terrenos arenosos, que são porosos, facilitam a passagem da água, fazendo que com o necro-chorume chegue mais facilmente ao lençol freático.

Dona Esther, a senhora nasceu em que cidade?

Nasci a 3 de maio de 1942, aqui em Santa Terezinha, Piracicaba. Na época Santa Terezinha era uma vilinha, papai tinha sítio em Santa Terezinha. Havia muitos sítios em Santa Terezinha. Como só tinha filhas, não tinha como tocar a lavoura, ele foi obrigado a vender o sítio. Ele comprou uma casa no centro de Santa Terezinha, essa casa ainda existe, fica na Rua Virgílio da Silva Fagundes, conheci o Zé Carlos lá, e nos casamos. Meu pai chamava-se João Zen e a minha mãe Joana Helena Larroca Zen, tiveram oito filhos: Ermelinda, Ercília, Elvira, Esther, Helenice e Sueli sendo que faleceram muito novos: Alécio e Hélide. Na época os recursos médicos eram com mais limites. Em Santa Terezinha tem uma rua com o nome do meu pai: Rua João Zen.

Nesse sítio em Santa Terezinha o que era cultivado?

Papai plantava de tudo: cana-de-açúcar, café, milho, arroz, mandioca, frutas. O sítio ficava no bairro Boa Esperança, um pouco acima do ribeirão existente lá, onde existe uma vala abaixo do Atacadão era um ribeirão, o sítio do papai ficava nesse ribeirão e ia até lá em cima, no Boa Esperança, pegava toda aquela região da hoje Vila Sônia, onde está o terminal de ônibus urbano. Vizinhos tinha o sítio do Zanin, do Paulo Grandis. A casa do papai era uma casa grande, foi demolida para passar a avenida. Todos nós irmãos ficamos indignados por terem derrubado a casa! Era uma casa muito bonita, com varanda, escadaria. Papai que construiu. O meu avô paterno é Nicola Zen, tem uma rua em sua homenagem em Santa Terezinha. Sua esposa era Elvira Zen. Meu avô veio da Itália com 12 anos, no Fanfulla um navio a vapor italianoque fez o transporte de imigrantes italianos entre a Itália e o Brasil diversas vezes.(No primeiro quarto do século XX foi afundado por um U-Boot alemão.)

O avô da senhora veio sozinho da Itália?

Ele veio com a família toda. Inclusive ele teve irmãos que nasceram no Brasil.

Em que ano o pai da senhora se desfez do sítio?

Foi em 1958. A agricultura sempre foi complicada. Hoje a agricultura é explorada em alta escala por grandes empresas. O pequeno agricultor tem muitas dificuldades para sobreviver.

Nessa época a senhora trabalhava?

Trabalhava na roça mesmo! Saia da escola e ia trabalhar, estudava na Escola Municipal Prof. João Batista Nogueira, que na época situava-se em outro local físico, passava o trenzinho da Companhia Sorocabana de Estradas de Ferro, passava em Santa Terezinha, as crianças do sítio da Santa Lídia, Artêmis, vinham de trenzinho que parava em frente a escola. Enquanto não chegava o trem não entravamos na sala de aula. Minha primeira professora foi Dona Terezinha da Cunha, depois tive aulas com Dona Oscarlina, Dona Gertrudes Barbosa Moretti, tem uma rua no bairro Algodoal com o nome dela, no quarto ano tive aulas com Olga Benatti, ela lecionava Canto Orfeônico para nós, era regente do coro da Catedral.

A senhora ia como para a escola?

Ia a pé, com sol, chuva, não perdia aula. No período em que estudei, quando chegava em casa tinha os deveres, arrumar a casa, a cozinha. Tinha que deixar tudo em ordem. Minhas irmãs mais velhas já cozinhavam, eu não. Minha irmã mais velha aprendeu a costurar, ainda quando era novinha, com 13 anos ela costurava calça, camisa para todo pessoal. Minha mãe comprava peças de algodão cru, na Casas Pernambucanas, Casa Moniz, Casa Dom Bosco. Quando recebia dinheiro da usina papai falava: “-Isto aqui é para as despesas!”. Comprava vestidos para as festas, calçados, tinha que durar até o ano seguinte.

Pelo fato de comprar uma peça de tecido, a estampa era a mesma para todos?

Ficava todo mundo igual! Era comum na época. Não tínhamos rádio, éramos doidas para ter um rádio. Era um sonho ter um rádio para ouvir Tonico e Tinoco, aquela tarde sertaneja, Nelson Gonçalves, ouvir as novelas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Paulo Gracindo (pai) era um galã. Lembro-me que dizíamos: “Papai, não vai dar para comprar rádio?”. Ele respondia: “-Se Deus ajudar, aquela rocinha de feijão vamos usar para comprar o rádio!”. Veio a seca, nada de rádio! Muito tempo depois compramos o rádio, como não havia energia elétrica era ligado a uma bateria de carro. As vezes acabava a carga no meio da novela. Uma vez acabou a carga, estávamos sozinhas minha irmã e eu. Dissemos: “Vamos no Alcides Motta, lá em Santa Terezinha, buscar um acumulador?”. Engatamos o burro no carrinho e fomos buscar, depois o meu pai ficou sabendo, deu a maior bronca.  Era um rádio muito bonito, colocamos em um lugar de destaque na sala. Era moderno para a época, uma madeira amarela, passávamos óleo de peroba para ficar brilhando. Tinha duas hastes de madeira nas extremidades do telhado, um fio de metal esticado e outro descendo até a entrada da antena do rádio. Quando víamos uma casa com antena dizíamos: “Lá tem rádio!”. Era sinal de status. Nós éramos os únicos que tínhamos rádio nas imediações. Domingo a vizinhança ia lá em casa para ouvir cururu: Pedro Chiquito, Nhô Serra, Parafuso. Foi uma época em que a amizade era mais forte. Quando um vizinho abatia um porco, um boi, era repartido graciosamente entre todos. Fazíamos linguiça em casa, descascava alho, colocava a pimenta do reino.

Deixava dependurada?

Ficava dependurada, mas não em cima do fogão de lenha, senão ela ficava defumada. Ficava na dispensa. Tinha as peças de toucinho dependuradas, Não se comia essa linguiça mole que se compra em supermercado! Ela tinha que ficar seca, era quase um salame, ficava muito gostosa. Comia crua, colocava no meio do pão.

Naquela época as mulheres geralmente davam a luz na própria casa?

Havia muita solidariedade. A parteira muito competente era a Angelina Chiodi, ela trabalhava na Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba e morava em Santa Terezinha, tinha uma farmacinha que atendia a população. Quem tinha dor de garganta, uma febrezinha, ia lá. Ela era a parteira de todas as mulheres do bairro, na hora do parto se ouvia: “Chama Dona Angelina! Chama Dona Angelina!”.

Não havia pré-natal, nenhum desses procedimentos que existem hoje?

Que pré-natal? O pré-natal da mulherada era no cafezal! Eu mesma, ainda mocinha, colhia algodão, café. Isso fiz até 16 anos, quando papai vendeu o sítio, era o Sítio Bela Vista. Tínhamos um cavalo, marronzinho, manso, o “Gaúcho”. Nós vínhamos para a cidade com um carrinho de roda de madeira e aro de ferro, puxado pelo “Gaúcho”. Vinha a família toda, eram colocadas umas cadeirinhas para as meninas menores, outra ia no meio, uma no colo da mamãe, uma dependurada em cada lado e passeávamos.

A senhora era mocinha, naquele tempo tinha bailes em Santa Terezinha?

Tinha! Faziam casamentos com bailes, tinha festas na Igreja de Santa Terezinha, a antiga que está sendo restaurada, vínhamos nas festas. As famílias frequentavam. Havia um respeito muito grande, tinha os amigos, os primos, íamos ao baile, as onze horas tínhamos que estar em casa. E nada de namorar!

A senhora participava das atividades paroquiais?

Todos os dias as seis horas da tarde eu tocava o sino da igreja! Subia na torre e puxava a corda. Eu pegava a chave na casa da senhora que tomava conta da igreja e ia cumprir a minha tarefa. Eu seguia o horário pelo relógio da minha casa. Naquela época relógio de pulso era característica de pessoa rica. Os moços que ganhavam um relógio de presente da namorada era notícia. Um acontecimento.

Como a senhora conheceu o seu futuro marido?

É uma história muito bonita. Embora tenha algumas coisas de triste também. Havia restrições familiares com relação ao nosso casamento. Não era uma relação com aprovação familiar. Casamos e tivemos quatro filhos, nenhum deles ingere bebida alcoólica e nem faz uso de tabaco. Nem os meus filhos viram o pai ingerir álcool. O Zé Carlos era músico, quando o conheci era alcoólatra. A beleza dessa história está na superação do vício. Outro fator é que mesmo alterado era incapaz de provocar uma briga, ter ações violentas, ele tornava-se em uma pessoa mais alegre, extrovertida. Eu trabalhava como telefonista em Santa Terezinha, era funcionária de Prefeitura Municipal de Piracicaba.

Como a senhora iniciou esse tipo de trabalho?

Foi instalada a estação de PBX em Santa Terezinha, abrangia toda aquela região, até hoje lembro-me de todos os números de telefones de sítios, fazendas, fábricas. Lembro-me que 301 era do Hermínio Grisotto, era o subprefeito de lá. 302 era do Chiodi, 303 era do armazém do Mardegan. Para pedir a ligação mexia-se uma manivela e pedia para a telefonista fazer a ligação para o número desejado. Havia uma central com plugue das linhas operada pela telefonista.

Em que local ficava o PBX?

O PBX foi instalado na sala da casa do meu pai. Eu trabalhava em casa! Eu trabalhava até as 14 horas, depois era outra minha irmã que ficava.

De madrugada tinha ligações?

Tinha! E muitas! Geralmente era por motivo de doença, chamar a ambulância, algum bêbado que estava caído em algum lugar.

Tinha trote?

Não tinha. Havia sim dificuldades de expressão quando a pessoa pedia a ligação, algumas vezes tinha que descobrir o que a pessoa queria, como uma pessoa, cuja esposa estava no hospital e essa pessoa pediu: “Por favor! Ligue na maternidade dos homens!”. Fatos dessa natureza, a falha de expressão, era comum. Era um pessoal muito simples que protagonizavam essas situações.

Telefonista era uma profissão importante, respeitada pela população?

Era uma profissão muito respeitada. O nosso atendimento tinha que ser imediato, as vezes estávamos atendendo a uma pessoa, quem tinha que receber o recado não tinha telefone, íamos anotando, enquanto isso outro usuário chamando para completar a ligação. Se demorássemos um pouquinho muitas vezes a pessoa que queria a ligação ficava impaciente.

Uma ligação para fora de Piracicaba como funcionava?

Era o interurbano. Muitas vezes uma ligação para São Paulo demorava mais do que o tempo de ir e voltar de carro, trem. Era comum o interessado marcar a hora para completar a ligação, por exemplo. A pessoa pedia a ligação as 10 hora da manhã e marcávamos a ligação para São Paulo as 15 horas. Para a pessoa não ficar esperando esse tempo todo. Eu ainda passava para a central em Piracicaba, a Companhia Piracicaba de Telecomunicações CIPATEL, o gerente era o Professor Olenio Veiga, grande violinista. Trabalhei como telefonista por três anos, me casei, depois voltei a trabalhar e aposentei-me em 1979.Sempre no PBX. Papai vendeu a casa, nós todos casamos, a casa era grande, ele construiu uma casa menor. O Centro Telefônico mudou-se para uma residência onde era a Guarda Municipal. Depois chegou o telefone automático. Após o PBX sair de casa, eu trabalhava das seis horas da manhã até o meio-dia, minha irmã trabalhava do meio dia até as seis horas da tarde e a minha sobrinha trabalhava das seis horas da tarde até as onze horas da noite. As onze hora da noite o guarda assumia o trabalho. Santa Terezinha era muito diferente, logo na entrada, saindo da pista, passava pela propriedade de Antonio Dias de Souza, a Rua Nossa Senhora do Carmo é em homenagem à sua esposa Dona Carminha, a sua filha Maria do Carmo estudou comigo. O sobrado que existia ali, era histórico, demoliram para fazer banheiro! Onde esse povo está com a cabeça? Onde hoje é a Belgo-Mineira, era só eucalipto, tinha uma estradinha que passava no meio, íamos de carrinho com tração animal até a Fazenda Santa Rosa onde morava uma tia da mamãe, lá de cima papai e nós olhávamos para trás, ele dizia: “Lá é a Casa da Baronesa”. Ficava na região da Nova Piracicaba.

Quantas linhas de telefone havia em Santa Terezinha?

Havia duas linhas para atender a 30 telefones. Se tivessem duas pessoas conversando ao telefone, as outras 28 tinham que esperar! Tinha um relê, quando acabava de falar o relê caía, as vezes dava problema, não caía. Quem estivesse operando o PBX entrava na linha e dizia “Alô, alô!”. As vezes o usuário dizia: “Estou falando ainda!”. No Museu Prudente de Moraes tem um PBX que era de Saltinho. Ártemis também tinha PBX.

As telefonistas se conheciam entre si?

Sim, nos conhecíamos! Fiz muitas amizades, conheci muitas pessoas, pela voz já identificava a pessoa.

A senhora disse que conhecer o seu marido José Carlos de Godoy Brasil foi um acontecimento?

José Carlos de Godoy Brasil nasceu em 01/031937, em Campina Grande, Paraíba, filho caçula de Cornélio Wanderley e Luzinete de Godoy Brasil, que tiveram cinco filhos, sendo que dois faleceram ainda novos. Seu pai, Cornélio era comerciante de algodão e em dezembro de 1937, o armazém da sua empresa “Cornélio Brasil &Cia” sofreu um incêndio acidental de grandes proporções.  Cornélio faleceu em fevereiro de 1938, com apenas 30 anos, vítima de tuberculose. José Carlos aos 11 meses ficou órfão de pai. Sua mãe, viúva, juntamente com os filhos foi para Recife, Pernambuco. Aos 14 anos ele ingressou no Instituto do Açúcar e do Álcool, o IAA, na Delegacia do Recife. Quando ele

completou os 17 anos a Delegacia do IAA em São Paulo estava necessitando de funcionários, ele se inscreveu para vir para São Paulo. Como era menor de idade a mãe veio junto. Permaneceram por oito anos em São Paulo, morando na Rua das Palmeiras. De lá ele foi para Ribeirão Preto, onde permaneceu por dois anos. No final de 1962 ele veio aqui para a Destilaria Gileno De Carli, no hoje conhecido como Bairro IAA.  Ele morava a duas casas da casa da residência da minha irmã, o meu cunhado também era do IAA. Minha irmã chegava em casa e dizia; “Esther, está morando um casal, um rapaz e mãe dele, é um moço muito educado, toca um violão que é uma beleza, ele canta, é muito brincalhão”. Pensei: “quero conhecer essa pessoa”. Um sábado teve um casamento em Santa Terezinha, de uma amiga nossa, Ele chamava-se Benedito Lourenço, um negro muito respeitado no bairro. Naquela época quando tinha um casamento todo mundo ia. Eu estava trabalhando como telefonista, bateram na porta. Abri, um moço muito cavalheiro disse-me: “Senhorita, por favor, preciso fazer uma ligação para a minha mãe na Destilaria, vai ter um baile aqui hoje, vou ao baile e quero avisar que vou chegar tarde.”

Eu perguntei-lhe: “Você é o Carlinhos?” Ele afirmou que era e perguntou-me quem eu era; Respondi-lhe que era irmã da Elvira. Ele era muito formal, respondeu: “Ah, a senhora Dona Elvira! Eu vou ao baile, tive até que emprestar um paletó e uma gravata”. Naquele tempo não se admitia o acesso a bailes, cinemas, sem paletó e gravata. Ele perguntou-me se eu ia ao baile. Disse-lhe que iria. Sua afirmação foi: “-Eu vou dançar com você!”. Fui ao baile, ele veio tirar-me para dançar. Minha mãe já sabia da fama dele, o seu vício pelo álcool, ela olhava com olhar estalado! A nossa família toda estava em um salãozão. Ficava na Travessa Luiz Franchi, 55 Santa Terezinha. Hoje nesse salão é a Academia de Ginástica do Ernesto Randolfo Bernardino. Dançamos, depois de terminado o baile ele me acompanhou até o portão de casa. Ele disse-me: “Amanhã venho buscar você para irmos à matinê!” Disse-lhe: “Nem venha!” Ele disse que estaria no dia seguinte a uma hora da tarde para me buscar. No dia seguinte me arrumei e fomos ao cinema, no Cine Polyteama. Viemos com ônibus que vinha de São Pedro e tinha um ponto em Santa Terezinha. O ônibus passava às 13:20, a sessão começava as 14:00 horas. Descia no Largo São Benedito. O ônibus fazia uma parada no Largo e depois ia para a Paulista para pegar os passageiros que vinham de trem até Piracicaba. Estava próximo do carnaval, ele disse que não iria estar em Piracicaba, ele tinha uns amigos de seresta em Pirassununga: o Nelson, o Roberto Batistella.  Eram amigos desde quando moraram em São Paulo. Após o carnaval, uma sexta-feira à tarde, eu estava fazendo faxina em casa, batem na porta. Atendi. Era ele! Passamos a ter uma relação de Romeu e Julieta, minha família era contra o nosso namoro. A mãe dele sabia que a minha família não queria, ela também não queria. Encontrávamos às escondidas. Pensávamos que só nós sabíamos. Mas quando eu chegava em casa Santa Terezinha inteira sabia que tínhamos nos visto. Foi um período muito sofrido. A contragosto o meu pai aceitou o nosso namoro, ficamos noivos, por algum motivo terminamos. Teve um baile na Fazenda Dona Lavínia, Seu Hermes era o administrador, pai da Cida Abe, eu era amiga das meninas: da Edna, Elza. Meu pai sabia que eu tinha terminado o namoro, deixou-me ir. O Zé Carlos também foi ao baile. Minha irmã não podia nem vê-lo. O Zé Carlos e eu ficamos conversando, minha irmã viu. De lá ela telefonou para o meu pai, dizendo que eu tinha voltado a namorar com o Zé Carlos. E aí para chegar em casa? Eu disse a ele, vamos embora a pé? A fazenda é em frente a Usina Costa Pinto, viemos andando pela estrada, estava uma noite de lua cheia, quando chegamos na estrada de Charqueada passou um colega nosso de caminhonete, ele também estava no baile, nos deu carona. Nos deixou na Destilaria, na casa da minha sogra. Ela e ele me levaram até a minha casa. Quando me aproximei de casa estava tudo iluminado. Era umas três horas e meia da manhã. Até o meu avô estava acordado! Foi aquela confusão! Nem deixei o Zé Carlos e a mãe entrarem em casa. Me deitei na cama, o meu pai falando muito, disse: “-Amanhã quero esse rapaz aqui, vou falar com ele!”. Não tinha acontecido nada demais, viemos de um baile a pé.  Eu tinha que levantar para trabalhar no PBX, as seis horas da manhã. Conforme meu pai desejava, liguei para o Zé Carlos, meu pai queria falar com ele. Ele veio, meu pai foi direto ao assunto: “Amanhã vocês vão casar!”. Eu pensei: “Ô coisa boa!”. Só que eu não tinha nem enxoval pronto ainda, não tinha vestido de noiva, não tinha nada. Sei que diversas pessoas, amigas, da família, prontificaram-se a fazer cada um alguma coisa. Eu tinha uma amiga, Deise, que emprestou-me seu vestido de noiva, ficou impecável. Outra tinha a grinalda. No domingo a tarde fui atrás das minhas amigas, do meu padrinho de batismo, Na segunda feira cedo fomos ao cartório de registro civil situado na Avenida Rui Barbosa. Os papeis ficariam prontos as quatro e meia da tarde. Fui até uma loja, comprei um corte de tecido, fui até a minha irmã Ermelinda e disse-lhe: “Quero esse vestido desta forma, para casar hoje à tarde no civil!”. Ela fez o vestido para mim. No dia. Casamos. Fomos até a Igreja da Vila, combinamos com o Padre Jorge para casarmos no sábado. Eu o conheci em fevereiro, em agosto nos casamos. Dia 19 de agosto de 1963 casamos no civil, no dia 24 de agosto na Igreja Matriz antiga da Vila Rezende, quem celebrou o nosso casamento foi o Padre Jorge. Eu era Filha de Maria em Santa Terezinha.

Quantos anos vocês permaneceram casados?

Ficamos 56 anos casados. Sem uma briga, nunca dormimos brigados. Dessa união nasceram quatro filhos: Carlos Magno, ele tem uma franquia de escola de arte, seu talento deve ter origem na atividade do Zé Carlos, que gostava de desenhar. Tinha a mão habilidosa para a arte, nos anos 60 fazia “bicos” como desenhista publicitário em Santa Terezinha. Pintava e ilustrava estabelecimentos comerciais. Lá ficou conhecido como “Bedas” (pronuncia-se “bédas”). Nos anos 70, a manutenção de instrumentos eletrônicos era onerosa, Zé Carlos decidiu estudar eletrônica sozinho tornando-se o mais requisitado técnico de manutenção de órgãos eletrônicos nos anos 70/80. Ele aceitou o desafio de transistorizar completamente um órgão a válvulas. Isto é converter para transistores todo o circuito com válvulas, o que exigiu que fizesse todo o projeto eletrônico e ele mesmo o executasse. Foram dias e noites debruçados nos livros de eletrônica estudando as possibilidades, desenhando o circuito e executando o projeto. Ficou espetacular. Outra proeza foi projetar e montar o seu próprio órgão eletrônico, que usou entre 1979 e 1983.

Ele fazia órgãos com pedaleiras. Ele gostava muito de cinema, tinha seu projetor de filmes, alugava os filmes e passava em Ártemis, Saltinho, no Engenho Central. Isso antes de tornar-se músico profissional.

Quando a senhora o conheceu tocava algum instrumento?

Eu estava estudando órgão. Parei. Eu renunciei a tudo, por paixão. Meu objetivo era que ele deixasse de ingerir bebida alcoólica. Eu pensava em ter filhos. Abri mão de tudo, por um período me afastei um pouco da minha família, Depois voltamos, papai o elogiava, meu pai teve um problema de saúde, o Zé Carlos foi quem tomou todas as providências para que ele fosse tratado com recursos médicos. Um dia, após algum tempo, ele disse: “Zé Carlos, você foi quem eu mais critiquei e no entanto foi quem mais me ajudou”.

José Carlos e Esther tiveram quatro filhos: Carlos Magno, Alex, Liliane e Carlos Alexandre. Carlos Alexandre Brasil, físico, professor de física na Universidade Tecnológica do Paraná é um dos filhos do casal.  O gosto pela arte foi herdado por Carlos Magno que estudou desenho artístico, Alex Ricardo é funcionário público federal, formado pela USP de São Paulo, em história com especialização em arquivologia. Apaixonado por cinema. Responsável pelo Cinepiano, onde filmes mudos são projetados com trilha sonora ao vivo e as improvisações de um pianista, como era feito nos primórdios do cinema. Liliane Magda estudou teclado em Tatuí. É professora de música. Carlos Alexandre afirma: “Somos todos o nosso pai, que sozinho, fazia o que todos juntos fazemos!”.

Carlos Alexandre onde foi a sua formação acadêmica?

Estudei na USP em São Carlos, onde fiz graduação e doutorado, passei três anos na Unicamp fazendo pós-doutorado, voltei para a USP onde fiz o segundo pós-doutorado, quando prestei o concurso e passei nesse cargo que ocupo hoje em Cornélio Procópio, na Faculdade Tecnológica Federal do Paraná UTFPR.

Carlos Alexandre. qual era a relação do Zé Carlos com o Cobrinha?

O meu pai, Zé Carlos, as vezes estava tocando, o Cobrinha estava na festa, eles acabavam tocando juntos. Zé Carlos lançou vários talentos como tecladista, como o Tadeu da Academia Styllus de Música, o Hermes Petrini. Nos anos 50 quando ele ainda morava em São Paulo, viajava frequentemente até Pirassununga para fazer serenatas com um grupo de amigos. No final dos anos 60 tocou violão acompanhado pelo seu grande amigo Antonio Carlos Coimbra na harpa, no restaurante Sobrado em Águas de São Pedro. Amava bossa-nova e gabava-se de ter sido um dos primeiros a trazer para Piracicaba a “batida”, as dissonâncias e a voz mansa do novo ritmo criado por João Gilberto. Apresentava-se com sua banda New Soul nos carnavais de diversas cidades da região. Foi animador de auditório no então Clube de Campo de Santa Terezinha, (Localizado onde hoje situa-se o Atacadão) com shows de calouros e outras atrações.  Na metade da década de 70 iniciou os estudos de órgão eletrônico na Yamaha, em São Paulo, instrumento que faria dele presença constante no cenário musical de Piracicaba, São Pedro, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná. Em Águas de São Pedro inaugurou o Hotel São João e tornou-se músico contratado do hotel, tocando em almoços e jantares ao longo dos anos 70. Após o término do contrato foi contratado Pelo Grande Hotel-Escola SENAC de Águas de São Pedro de 1979 a 1981. Nos anos 80, acompanhando a tendência fez a transição para o “teclado eletrônico”. Sozinho, com esse instrumento, animou casamentos, bodas, formaturas, aniversários, recepções solenes. Animou sozinho carnavais nos clubes Coronel Barbosa e Cristóvão Colombo, além de fazer a decoração do espaço!  Compôs marchinhas de carnavais para esses clubes, na época em que Heitor Montenegro era o presidente do Clube Coronel Barbosa. Em Águas de São Pedro, apresentava-se sozinho como atração no restaurante Roda d`Água, nos hotéis Avenida e Jerubiassaba. Foi o musico oficial da Força Aérea em Pirassununga e na Base Aérea Santa Cruz, no Rio de Janeiro, atuando nos eventos promovidos pela Aeronáutica, inclusive nas visitas dos Presidentes da República, ministros de Estado, apresentações da Esquadrilha da Fumaça. Tornou-se presença constante no Egidio`s Buffet em Sorocaba, Marinho em Marília, Lona Branca em Ribeirão Preto e Panela Preta em Pirassununga. Nas festas do Chope em Votorantim. Lembro-me do meu pai enchendo o carro com pesados amplificadores, caixas de som, órgãos/teclados partindo para alguma cidade apenas com um mapa. Ele tocou ao lado de músicos consagrados como Araquém Peixoto (Tromponista, irmão de Cauby Peixoto), abriu shows com Dick Farney e Pedrinho Mattar. Em reconhecimento ao seu trabalho em 1992 recebeu o diploma de consagração pública, em primeiro lugar como “Show Man – Tecladista” por estar enaltecendo a arte e a cultura brasileira. Em 8 de dezembro de 2017 recebeu um diploma de consagração da Ordem dos Músicos do Brasil. Através do seu canal do You Tube recebia curtições de várias partes do planeta, com seu repertório baseado em Bossa Nova, Julio Iglesias e Frank Sinatra.

Dona Esther, ele compôs alguma música para a senhora?

Não, mas cantava muito “Dio, come ti amo”! Ele fazia serenatas para mim quando eu era solteira. Meu pai gostava de jogar boche, e naquele tempo havia um bar, enquanto meu pai estava jogando ele estava no bar tocando violão. Meu pai chegou em casa e disse: “E não é que o “estrupício” toca bem!”. Era uma época de muito romantismo. Meu marido tocava o repertório de Júlio Iglesias, Nelson Gonçalves, Altemar Dutra.



O José Carlos executou músicas para Armando Dedini?

Tocou em muitas festas do Armando Dedini, do Dr. Dovilio Ometto, realizadas na propriedade deles no bairro Água Seca. Quem gostava da sua música é Nelson Torres. O Mário Terra tinha uma coluna no jornal e sempre noticiava suas apresentações musicais. Ele tocou muito na boate Zum-Zum. Ele tinha uma grande amizade com João Chaddad, que ia em casa com a Dona Esther. O Zé Carlos e o João ficavam cantando as músicas executadas no teclado. Os dois fizeram gravações. Ele ultimamente cantava muito a música de

Nelson Gonçalves “Quando Eu me Chamar Saudade”. Ele fazia muitas festas em Votorantin para o Dr. Antonio Ermírio de Moraes.

A senhora ia também?

Eu acompanhava ele! Não deixavam ele parar de tocar, tocava seis horas sem repetir, sozinho, no teclado. Não bebia nada, só água! Ele dizia que eu o havia salvado. Conheci o presidente do IAA Dr. José Maria Nogueira, pai do Ronnie Von (Ronaldo Nogueira). Acredito que ele veio para Piracicaba na inauguração do Hospital dos Fornecedores de Cana, ele e o meu marido almoçaram no Restaurante Mirante. Meufilho Carlos Magno foi convidado para dar uma entrevista no programa “Todo Seu” do Ronnie Von, isso foi no ano passado. Fomos eu e meu marido juntos com o meu filho. Quando o Zé Carlos fazia programa de calouros em Santa Terezinha eu também cantava, meus ídolos eram Francisco Carlos, Elvis Presley, Paul Anka, Nat King Cole, Frank Sinatra, Neil Sedaka, Miguel Aceves Mejia, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Trio Cristal, Trio Los Panchos. Lembro-me do Clube dos Artistas, Almoço com as Estrelas com Ayrton e Lolita Rodrigues. Cacilda Lanuza de Godoy Silveira, conhecida no meio artístico como Cacilda Lanuza era prima do Zé Carlos, ele conheceu Dorival Caymmi. Apresentou-se na Rádio Mayrink Veiga.Conheceu o maestro e arranjador Adylson Godoy irmão de Amilton Godoy pianista do Zimbo Trio.

O desejo do seu marido, era após o falecimento ser cremado?

Atendemos o seu desejo, ele foi cremado. As cinzas estão aqui em casa, e devemos cumprir sua vontade, vamos entregar às águas do Rio Piracicaba, que ele tanto amou. Será ao som de violino tocado pelo meu neto.
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