PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 30 de setembro de 2017
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
http://www.teleresponde.com.br/
ENTREVISTADA: MARIA HILMA DE OLIVEIRA GANZELLA e VIVIANE BERTONCELLO
(CRAMI Centro Regional de Registros e Atenção aos Maus Tratos na Infância de Piracicaba)
 
        VIVIANE E MARIA HILMA


O Centro Regional de Registros e Atenção aos Maus Tratos na Infância de Piracicaba, também designado pela sigla CRAMI, para todos os efeitos legais, fundado em 30 de outubro de 1986, sendo que o primeiro CRAMI foi fundado em Campinas para atender aquela cidade. Foi criado a partir da observação de médicos da UNICAMP que constaram o fato de muitas crianças de 0 a 17 anos vinham a óbito por fratura de crânio, vitimas de violência. A partir dessa observação criou-se o CRAMI que se constitui como uma associação civil de direito privado, sem fins econômicos. Tem como finalidade executar ações de prevenção, programas, projetos ou serviços de proteção social especial, dirigidos às crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade, de riscos pessoais ou sociais, ou que se encontrem sob medida de proteção legal ou judicial, bem como aos seus responsáveis visando prevenção, proteção, tratamento, reabilitação e defesa dos interesses e direitos estabelecidos na Constituição Federal do Brasil e na Lei 8.069 de 1990- Estatuto da Criança e do Adolescente conforme artigo 2º do Estatuto da entidade. No desenvolvimento de suas atividades, o CRAMI promove o bem de todos, não fazendo distinção de raça, religião, etnia, sexo, posição social, e opção partidária e quaisquer outras formas de discriminação prestando serviços gratuitos. Tem como missão contribuir para que crianças e adolescentes tenham seus direitos garantidos, e que a educação dos pais e ou responsáveis sejam pautados no diálogo e não na violência. Oferta Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos na proteção Básica abrangendo todo o Município de Piracicaba. Em Parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social oferta o Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade e Centro de Referência de Atendimento à Mulher. Desenvolve também 3 projetos: Projeto de Atendimento Psicológico às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual, Informar para Prevenir, Grupo Reflexivo da Violência Intra-familiar. O CRAMI Piracicaba foi fundado  por pessoas da sociedade civil, preocupadas em cuidar de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica, bem como seus familiares, ao verificar que na cidade ocorriam muitos casos de crianças vitimadas e a ausência de programas para atender essa demanda. Nesta época ainda não havia o Estatuto da Criança e do Adolescente, tão pouco o Conselho Tutelar, e vigorava o Código de Menores. Foi ai então que começou o trabalho do CRAMI, com a sociedade civil chegando antes do Estado para atender ao fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes em Piracicaba. A primeira presidente do CRAMI Piracicaba foi a psicóloga Maria Christina Monteiro Stroka. O atual presidente é Edmir Bernardino Valente que encerra o seu mandato dia 3 de novembro, mas ele já esteve como presidente em outras oportunidades.
 
Maria Hilma de Oliveira Ganzella nasceu a 17 de maio de 1960 na cidade de Novo Cruzeiro, Minas Gerais. É filha de Jair Coelho de Oliveira e Nair Senna da Silva, que tiveram sete filhos: Edvaldo, Murilo, Maria, Marilene, Olivia, Marlucia e Vanusa.
Você estudou em qual cidade?
Quando eu era ainda bebe minha família mudou-se para Vitória, Espírito Santo. Estudei e permaneci em Vitória até completar 20 anos, quando então mudamos para Piracicaba. Aqui fiz a faculdade de Psicologia na UNIMEP. Estudava a noite e durante o dia trabalhava no Jornal de Piracicaba onde permaneci por seis anos, no setor de assinaturas, localizado a Rua Moraes Barros. Foi na época da Dona Antonietta Rosalina da Cunha Losso Pedroso, do Dr. Losso, Dr. Eugênio. Eu já estava estudando psicologia quando saí do Jornal de Piracicaba para fazer estágio na Dedini. Quando me formei trabalhei no Projeto NAM – Núcleo de Apoio Multiprofissional. Esse núcleo trabalha famílias nas comunidades. Eram quatro equipes compostas por psicólogas, assistentes social e pedagogos. Faziamos um trabalho com pessoas em condições de vulnerabilidade social. A minha equipe atuava no Jardim Vitória, Kobayat Líbano, Novo Horizonte, toda aquela região. Permaneci nessa atividade por quatro anos, era um trabalho muito importante.
Nessa época você já estava casada?
Eu casei-me em 1988, na Igreja Bom Jesus com Denilson José Ganzella, temos dois filhos: Vitor e Tiago.
Em sua função profissional, os problemas são das mais variadas naturezas, isso pode sair do campo profissional e interferir na vida pessoal?
Diante de determinadas situaçoes é natural ficar indignada. Procuro não levar para a minha casa as situações que vivencio profissionalmente. Mesmo porque meu marido trabalha em uma área completamente diferente, ele é engenheiro civil. 
Em que ano você ingressou no CRAMI?
Entrei em 2000. Eu já me identificava com essa demanda, a violência contra a criança e o adolescente é um tema que me interessava bastante, através do Jornal de Piracicaba li que o CRAMI estava contratando psicólogos. Quando entrei o CRAMI atendia a todas as violações de direitos da criança e do adolescente.
Em média quantas pessoas vocês atendem por mês?
Aproximadamente umas 250 pessoas. São vários projetos.
De onde vem os recursos?
Temos os associados, beneméritos, doadores. Realizamos eventos, atuamos na Festa das Nações representando a Coréia do Sul. Temos também convênio com o municipio no Serviço de Abordagem Social, desenvolvemos com a prefeitura também o CRAM – Centro de Referência de Atendimento da Mulher, temos algumas parcerias com a prefeitura.
Quais são os serviços que o CRAMI  presta à população?
Trabalhamos com a prevenção da violência por meio da convivência e fortalecimento de vinculos na faixa etária de 0 a 16 anos. Temos esse serviço da prevenção da violência.
Quando vocês são acionados?
Temos um projeto para atender as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, esses casos chegam a entidade encaminhados pelos CREAS-Centro de Referência Especializado de Assistência Social, eles atendem a família, a criança, o Conselho Tutelar encaminha esses casos para os CREAS. Quando eles identificam que há a necessidade de um atendimento psicológico a essa criança que foi vítima de  violência, eles acionam o CRAMI encaminhando o caso. Temos também um projeto denominado Informar Para Prevenir. Tem como objetivo levar informações para crianças e adolescentes nas unidades escolares públicas municipais e estaduais. Somos constantemente convidados a dar essas palestras.
Quais são os efeitos dessas palestras para as crianças e jovens?
Esse projeto tem como objetivo de levar informações, identificar situações que não foram  notificadas ainda, existem mas estão ocultas. E encaminhar essas situações para o atendimento. Orientar o encaminhamento para o Conselho Tutelar, inserir essas pessoas nos atendimentos nos serviços do município.
Vocês trabalham com todas as classes sociais?
Trabalhamos com todas as faixas de público. A violência infelizmente está em todas as classes sociais. Esse tipo de desvio de conduta não escolhe a posição financeira ou social. A violencia é cultural, histórica, social.
Quando é mencionado o termo violencia, a primeira referência que ocorre é a violencia sexual.
Ela pode ser a violência física, a negligência, o abandono. Há muito abandono de crianças e adolescentes. Quem atende a essa demanda são os CREAS, trabalhamos com projetos, as entidades se complementam. O nosso trabalho complementa o serviço que já existe. O número de casos de violência é grande. No passado quando só existia o CRAMI atendiamos todos os casos de violência contra a criança e o adolescente. Com a criação do Conselho Tutelar cabe ao mesmo atender as notificações de violações de direitos. A responsabilidade é do poder público, o nosso serviço é complementar.
Vocês tem um ambiente com decoração diferenciada, apropriada para receber pessoas em condições especiais.
O prédio que ocupamos é alugado, temos em construção uma sede própria que deverá ter uma melhor acessibilidade, infelizmente por falta de recursos as obras estão praticamente paralisadas.
Nos seus 17 anos de atuação no CRAMI qual é sua sensibilidade com relação ao aumento da violência infantil?
Percebo que agora as pessoas falam mais sobre essa temática. Existem mais orgãos envolvidos nessa questão, o próprio governo criou programas para atender a essa demanda. Com o aumento da divulgação as notificações aumentam. Pudemos constatar isso em 2009 com a morte da menina Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos de idade, jogada do sexto andar, naquele ano atendemos 259 casos. A divulgação pela mídia foi decisiva. Neste ano, se falarmos apenas sobre casos de violência sexual, no decorrer deste ano atendemos até a presente data 71 crianças.
Como é a vida do adulto que teve sua infância ou adolescência traumatizada?
É retirada dela o direito de ser criança. A maioria dos casos de violência ocorre dentro de casa, alguém da própria família pratica a violência, na maioria dos casos o agressor convive com a criança. Tivemos aqui os mais diversos tipos de situações. Muitas vezes a criança ou o adolescente não relata o que está acontecendo com ele por serem ameaçados. Isso reflete na vida da criança como um todo.
No CRAMI a pessoa vai ser orientada como deve proceder frente a uma situação de violência?
Exatamente, procuramos orientá-la qual é o melhor procedimento a ser tomado, para quais orgãos deve se dirigir, enfim quais medidas a pessoa que está geralmente em pânico deve tomar. O CRAMI tem o atendimento das 8 horas da manhã até as 5 horas da tarde, no período do almoço há sempre alguém de plantão. Situa-se a Rua Floriano Peixoto, 1063, entre a Rua Benjamin Constant e Avenida Armando Salles de Oliveira, centro. O telefone é 3302.6797.  
Viviane Bertoncello é psicologa do CRAMI e atende vítimas de violência, estudou na UNIMEP, formada na turma de 2003, trabalha no CRAMI ha 10 anos, é piracicabana, nascida a 17 de julho, casada com Fábio Bertoncelo, são pais de um filho de nome Artur.
Viviane, o espancamento deixa marcas visíveis, enquanto outro tipo de violência deixa marcas psicológicas, pode-se afirmar que diminuiu o espancamento infantil?
Não sei se é possível afirmar que não existe mais espancamento contra a criança, a sociedade começou a refletir sobre isso. Ainda existem muitos casos que são denunciados ao Conselho Tutelar, ainda existem crianças e adolescentes que vão a óbito devido ao espancamento. Antigamente o pensamento corrente era de que: “O filho é meu, faço o que eu quero”. Após o caso Bernardo Boldrini, então com 11 anos de idade, encontrado morto em um buraco na área rural de Frederico Westphalen, no Norte do Rio Grande do Sul, seu nome foi dado a nova lei que proíbe bater em uma criança. Ainda há alguma polêmica sobre o assunto, há quem afirme que se os pais não baterem hoje a polícia terá que bater no futuro. Houve uma abertura ao dialogo sobre o assunto.
O fato de ser permitido o trabalho como menor aprendiz aos 14 anos de idade contribui na formação do menor?
Viviane afirma: “Acredito que atualmente a criança tem mais informação, isso não significa que tenha maior formação. É suscetível a todo tipo de informação da mídia. Uma criança ou adolescente sozinho acessando a internet é como deixar na rua. É muito vulnerável.”
 As crianças que são vitimas em sua grande maioria são de lares desestruturados?
Falta de estrutura social, isso engloba também o aspecto financeiro, o problema social ocorre quando a pessoa está a margem da sociedade. A pessoa não consegue emprego formal, não consegue alugar uma casa, passa a morar em área de risco, o local em que ela mora é insalubre, pessoas que estão em conflito com a lei também moram lá, A porta fica aberta para que se torne um desviante, a ausência do Estado faz com que o espaço seja ocupado por pessoas que disputam o poder com o Estado.
Qual é a sua perspectiva para quando as crianças de hoje se tornarem adultos?
Sempre tenho esperança. Fico triste em ver a escola com baixa qualidade, nossas crianças merecem coisa melhor. Parece haver uma falta de interesse político em ter escolas públicas de ensino básico com excelência, como tivemos no passado. Se o ensino formar bons cidadãos eles ao constituírem uma família no futuro irão transmitir bons princípios. As noticias que a todo o momento nos chegam são decepcionantes e isso reflete na população com muito impacto. Há uma corrente de pensamento que afirma que quando chegamos ao caos total aparece uma luz.
Por que um pai espanca um filho?
Muitos não conhecem outra forma de educar. Faz parte da nossa cultura, estabelecer limites pela violência.
Há casos em que os pais ocupam cargos com altos salários, tem um alto padrão de vida, mas deixam seus filhos aos cuidados de pessoas com pouca ou nenhuma formação para a educação dos mesmos?
A corrida desenfreada para atingir uma posição de maior destaque em alguns casos faz com que a criança fique com uma babá. Acho que o pai não tem consciência plena do contexto. Ele pode até imaginar que está proporcionando uma oportunidade a uma pessoa para que cuide de seus filhos e tenha a oportunidade de ter um emprego. A criança tem uma babá, mas a referência é o pai e a mãe.
Há um caso emblemático, onde a filha facilitou o assassinato dos pais pelo seu namorado e o irmão deste, foi constatado que a filha esperou a babá ir embora, pois foi ela quem deu-lhe carinho, cuidou quando estava doente.  Portanto ela preservou a vida da babá.
Nesse aspecto sim, há até um filme: ”Que Horas Que Ela Volta”, aborda um tema parecido. Tem famílias que acham que dando bens materiais está atendendo a necessidade do filho. “Compra” o carinho e atenção da criança com presentes.
O CRAMI atua também junto aos pais?
Nós temos um grupo onde comparecem as mães com os filhos, nesse grupo os pais são separados e não são presentes na vida dos filhos. A previsão de como esse grupo deve acontecer vem do Ministério do Desenvolvimento Social, denominado Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. A assistente social se encontra periodicamente com as mães junto com os seus filhos com o objetivo de fortalecer os vínculos, para que ela não sucumba com a violência. Temos convivido com as mais diversas situações, como por exemplo, filhos de famílias abastadas que não recebem nenhum tipo de atenção ou orientação por parte da família, tem o apoio financeiro mais nada. Um exemplo é um adolescente de 16 anos que não quer estudar, passa o dia todo jogando vídeo game. Outra criança tem 5 anos, a família permite que ele ande pelas ruas o tempo que quiser.  Nesses dois casos eles estão com muita dificuldade em socializarem-se. Hoje os jogos de vídeo game são on-line, tem pessoas do mundo inteiro jogando simultaneamente. Há uma rede de pedofilia que usa os jogos para conhecer os meninos. Um desses meninos fez amizade com um homem de São Paulo e que veio até Piracicaba para conhecê-lo. Tudo iniciou pelo vídeo-game.
O vídeo-game também é um alçapão para captar crianças?
Infelizmente deixou de ser apenas um jogo inocente. Os pais têm que ficarem muito atentos ao que os seus filhos estão acessando. As crianças e os adolescentes ficam vibrados nos youtubers que é um menino que fica comentando jogos de videogame e ele vai passando suas idéias, ele fala horas de videogame, de repente ele começa a falar sobre outros assuntos.
Há características próprias a cada classe social?
As dificuldades são semelhantes, alguns aspectos, porém se destacam, nas classes menos favorecidas destaca-se a violência, nas classes mais abastadas a negligência. Ambas são prejudiciais. Ninguém nasce rejeitando as regras sociais, há um histórico de vida, não é que nasceu assim.
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