JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 12 de dezembro de 2015.
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Os pais da senhora nasceram no Brasil?
IMAGENS DE TRÁS-OS-MONTES
Na época havia uma imagem de que no Brasil as libras esterlinas estavam em toda parte, o que era pura ilusão. Meu pai nasceu em 1888, embarcou em um navio e veio para o Brasil, desembarcando em Santos. Foi para São Paulo, no Brás, onde a irmã da minha mãe tinha uma pensão na Rua Marcos Arruda. Morei na Rua João Boemer entre a Rua Itapiraçaba e Rua Santa Clara.

Ele então decidiu abrir uma casa de móveis. Alguns anos depois minha mãe adoeceu, ela queria ir embora para Portugal. Em 1922 fomos embora para Portugal onde permanecemos por quase três anos. Fomos para Portugal no navio Astúrias, da Mala Real Inglesa, levamos 14 dias de viagem Quando voltamos de Portugal ao Brasil foram 9 dias de viagem, no navio Neptuno. Voltamos para o Brasil em 1925, aonde meu pai era patrão ele foi ser empregado, na casa de móveis. Ficou uns três anos lá até juntar algumas economias, abriu outra vez uma casa de móveis. Em 1932 veio uma crise muito forte, não havia uma casa comercial aberta, ninguém tinha emprego. Nessa época meu pai tinha uma casa de móveis, contava com cinco funcionários. Teve que encerrar as atividades. Calhou que o meu pai vendeu para pessoas que não eram boas pagadoras. Papai perdeu tudo. Morávamos em uma casa onde pagávamos de aluguel oitocentos mil réis, que naquela época era muito dinheiro. Fomos morar em um quarto e cozinha meu pai, minha mãe, meu irmão e eu. Na época eu estava estudando. Meu pai chegou a pagar dívidas cortando cabelo pelo equivalente a um real hoje, e a barba a cinqüenta centavos.
A Rua Augusta já era calçada?
Já! Lembro-me do jogador de futebol “Ministrinho”, era do Palmeiras, nunca fizeram homenagens para ele. Era um rei do futebol, morava na esquina da Rua Pena Forte Mendes. O Ministrinho era sapateiro remendão, sua casa era em frente ao colégio de freiras onde meus filhos estudavam. Quando não tinha guarda para atravessar a criançada lá ia ele com aquele avental, ficava no meio da rua atravessando as crianças. Quando eles jogar em outros lugares ele que carregava o saco das bolas.
Na fábrica de tecidos quantos anos a senhora trabalhou?
Trabalhei 14 anos. Lá eu era tecelã de seda. O proprietário era Jean Nicolau. A Rua Frei Caneca começa na esquina da Caio Prado, trabalhei ali. O Seu Jean Nicolau sabia que pegada a fábrica dele havia a Fábrica Santa Terezinha, era famosa, de seda também. Trabalhávamos só com peças de tecido, não era confecção de roupas. Fomos trabalhar lá, até que eles falaram que a fábrica ia mudar para a Vila Formosa, Zona Leste. Meu pai disse-me: “-Você não vai!”. O Jean Nicolau era um moço, ele andava com a azeiteira na mão subindo em cima dos teares azeitando, porque não tinha funcionário para fazer isso. Se estragasse um pedaço de fio, por menor que fosse ele chamava a nossa atenção, com luvas de pelica. Dizia que estávamos estragando, que aquilo custava. Ali nós aprendemos a sermos econômicas e a trabalhar direitinho. Permaneci 10 anos trabalhando ali. Ai a fábrica mudou para a Vila Esperança. Nessa fábrica conheci o meu marido, ele era ajudante de contramestre. Ele tinha 22 anos. Eu sou mais velha do que ele sete anos.
Porque Achiropita?
Eis a nossa história:
No ano de 580 um certo capitão Maurício enfrentou uma grande tempestade em alto mar. Gritava por socorro a Nossa Senhora e prometeu que, se fosse salvo com sua tripulação, construiria um santuário em sua homenagem. Desviado pelos ventos, por milagre, conseguiu salvar-se e, na aldeia em que atracou, encontrou um monge que lhe disse: “Não foram os ventos que o trouxeram para este lugar. Foi Maria, para que lhe construa um santuário, quando o senhor for eleito imperador”. A profecia cumpriu-se e o santuário foi construído em Rossano – Calabro.
Um artista da região iniciou uma pintura da imagem de Maria. Ocorria, no entanto, que tudo o que pintava durante o dia, desaparecia durante a noite. Assim, colocaram um vigilante para impedir a entrada de possíveis intrusos, que estivessem danificando a pintura.
Numa certa noite, uma formosa mulher, com uma criança no colo, pediu para entrar e rezar. Após insistir, obteve a permissão. Que mal poderia fazer aquela gentil senhora?
Passaram longos minutos e a mulher não saía da igreja. Quando o vigilante entrou, viu a imagem da mulher e do menino estampada no lugar da pintura. Por esta razão o vigilante saiu gritando pelas ruas: Nossa Senhora Achiropita! Nossa Senhora Achiropita! (A-kirós-pita – não pintada por mãos humanas).
Esta é a devoção Mariana que nossos irmãos italianos trouxeram para o Brasil e que nós veneramos como protetora e Mãe de nossa comunidade. Sua festa é celebrada no dia 15 de agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora. No Brasil, só existe uma igreja dedicada a Nossa Senhora, com o título de Achiropita que se encontra em São Paulo no bairro da Bela Vista – Bixiga. Sua festa é a maior comemoração religiosa da cidade. Que a Mãe de Deus, Achiropita, nos proteja como filhos e cuide de nós com amor!
Navios: o Asturias de 1925
Em setembro de 1925, nas páginas do jornal A Tribuna de Santos/SP, surgiu um artigo não assinado, provavelmente inspirado em material de divulgação da própria armadora, que transcrevemos parcialmente para dar ao leitor o feeling da época.![]() O Asturias em 1932, passando defronte ao Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro O Asturias é, no gênero, a unidade mais eficiente que se conhece até hoje. A engenharia naval inglesa, incontestavelmente a mais apercebida e aparelhada no que concerne à sua especialidade, tem, na nova construção, um dos seus mais legítimos títulos de glória. O Asturias é a prova mais eloquente. Lancemos um rápido olhar sobre os detalhes mais importantes desse novo transatlântico de 22 mil toneladas de registro bruto. É o maior e mais possante navio a motor do mundo, sendo acionado por seis motores de duplo efeito, de oito cilindros a quatro tempos, motores que são os maiores a diesel até hoje construídos para navios. Estes motores desenvolvem mais de 20 mil cavalos-vapor, transmitidos a dois eixos. O Asturias, que está destinado à linha sul-americana, satisfaz todos os requisitos do Ministério do Comércio e da Legislação Naval da Espanha. As suas principais dimensões são: comprimento de 655 pés (200 metros), boca (largura) de 78 pés (24 metros), possuindo luxuosas instalações para 1.740 passageiros e tripulantes. O navio tem proa direita e popa de cruzador e conta 11 anteparas estanques, que o dividem em 12 compartimentos. O casco duplo é contínuo de proa a popa, podendo ser lastreado com água doce ou salgada. Com essa magnífica unidade, fica a Mala Real Inglesa enriquecida de mais um transatlântico, que a coloca perfeitamente em harmonia com o espantoso desenvolvimento que vão alcançando os países da América do Sul.” ![]() O transatlântico inglês Asturias atracado em Santos, no cais do Armazém 16 (Bagagem), nos anos 1920/30 26 de fevereiro de 1926 – Capitaneado pelo comodoro E. W. E. Morrison, o transatlântico zarpa de Southampton com destino ao Brasil e ao Prata. Nesta viagem inaugural já se denotam dois grandes problemas que perseguiriam o Asturias até 1934: baixa velocidade e alta vibração da estrutura, fazendo sofrer os passageiros pela trepidação e pelo excessivo rumor. Janeiro de 1927 – Primeira viagem entre Southampton e Nova Iorque, rota que serviria ocasionalmente. Em 1934, a Royal Mail Lines decide trocar os motores, seja do Asturias, seja do seu quase gêmeo, o Alcantara, com a finalidade de lhes dar mais potência e velocidade. Foram necessários quatro meses de estaleiro para se proceder a mudança no Asturias, pois toda a casa de máquinas teve de ser remodelada para permitir a instalação dos novos motores, maiores em dimensão do que os originais. Aproveitou-se para substituir os hélices originais a quatro pás por outros de três pás, a proa foi encompridada três metros e seu desenho ligeiramente modificado. Outra alteração importante consistiu em aumentar a altura das duas chaminés originais em cinco metros cada uma. Em setembro de 1934, o Asturias ficou pronto, realizando novas provas de mar, quando alcançou velocidades superiores a 19 nós. Com as modificações internas efetuadas, a nova capacidade do transatlântico passou a ser de 330 passageiros em primeira classe, 220 em segunda e 768 em terceira. Aprovada a reforma pelos engenheiros navais, o Asturias foi, em seguida, enviado para realizar um longo cruzeiro, de vários meses de duração, saindo de Southampton para o Mediterrâneo, Canal de Suez, Extremo Oriente, Pacífico Sul, Estreito de Magalhães e retorno à Inglaterra via Atlântico Sul. O período entre 1935 e 1939 constituiu o ápice da qualidade de serviço dos dois grandes transatlânticos na Rota de Ouro e Prata. A cada uma de suas viagens, seja no sentido Norte ou no sentido Sul, os lugares a bordo eram reservados com, ao menos, dois meses de antecedência. ![]() O Asturias navegando na costa brasileira, em cartão postal da época, vendo-se as duas chaminés O Astúrias prestou, inicialmente, serviço em patrulhas no Atlântico Norte nas águas próximas à costa ocidental da Grã-Bretanha, sendo deslocado para o Atlântico Sul, após o encontro naval entre o corsário alemão Thor e o Alcantara, acontecido em julho de 1940. Após permanecer oito meses nesse teatro de guerra, o Asturias foi recolhido ao estaleiro da US Navy (Marinha dos Estados Unidos) em Newport News (EUA), para ser submetido a mais uma reforma. Novos canhões foram instalados no lugar dos antigos e o navio recebeu uma catapulta e um avião de reconhecimento. ![]() O Asturias no cais do armazém 16 do porto de Santos Foto: J.C. Rossini Terminado o conflito, o Asturias foi rebocado, inicialmente até Gibraltar, onde pôde ser feito trabalho provisório de consertos de maior urgência. Em seguida, levado para a Inglaterra, foi reformado inteiramente e reconvertido em navio de passageiros para o transporte de emigrantes. Nessa função, realizou viagens entre a Grã-Bretanha e a Austrália até 1953, ano em que foi novamente transformado em navio-transporte de tropas, repatriando soldados que haviam participado da Guerra da Coréia. Sua longa carreira de 32 anos chegou ao fim em setembro de 1957, quando foi demolido no Porto de Faslane (Inglaterra). ![]() O Asturias no Estuário de Santos, em pintura do inglês Kenneth Denton Shoesmith (1890-1939 ![]() “Asturias – Este cartão-postal mostra o navio inglês Asturias, em frente à costa do Rio de Janeiro. O cartão é um original da Royal Mail Steam Packet Company, editado com base em pintura do artista Bernard R. Lachevre e publicado pelos editores Raphael Tuck & Sons. O navio, de 22.071 toneladas e 192,16 metros de comprimento, transportava 408 passageiros em primeira classe, 200 em segunda e 674 em terceira (imigrantes). Fazia a linha entre Southampton e Buenos Aires desde fevereiro de 1926. Foi lançado ao mar, em 7 de julho de 1925, nos estaleiros de Harland & Wolff, de Belfast, Irlanda. Foi o segundo navio da armadora em esse nome; o primeiro era de 1908. Este era gêmeo do Alcantara II. No início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, serviu como navio de transporte de tropas inglesas. Em julho de 1943 foi torpedeado pelo submarino italiano Gagni, na costa da África do Sul. Ficou abandonado por algum tempo e em 1947 voltou a ser navio de transporte de tropas, até que em 1949 passou a conduzir imigrantes para a Austrália. Foi demolido em 1957″. Imagem: Acervo José Carlos Silvares/fotoblogue Navios do Silvares (acesso: 13/3/2006) |
Outros nomes: nenhum Bandeira: britânica Armador: Royal Mail Steampship Lines País construtor: Inglaterra Estaleiro construtor: Harland & Wolff (porto: Belfast) Ano da viagem inaugural: 1925 Tonelagem de registro bruto: 22.000 Comprimento: 200 m Boca (largura): 24 m Chaminés:2 Mastros: 2 Passageiros: 1740
O bom gatunoMeneghetti se transformou numa lenda em São Paulo por praticar roubos e sempre conseguir escapar. Os jornais paulistanos do dia 14 de junho de 1970 traziam uma notícia pequena, mas que surpreendeu muita gente: no dia anterior, Gino Amleto Meneghetti fora preso tentando entrar numa casa da Rua Fradique Coutinho 909, na Vila Madalena. Levava nas mãos uma lanterna, uma talhadeira e um pé de cabra, ferramentas típicas de arrombadores de portas e janelas. Tudo isso seria muito comum se o homem que fora detido não tivesse 92 anos de idade! Liberado por falta de provas, Meneghetti sustentou, com histórias como essa, seu status de figura mitológica da história de São Paulo. Gato dos Telhados, Ladrão Nobre, Bom Ladrão, Grande Ladrão, Homem Gato e Homem de Borracha foram algumas das alcunhas que ele ganhou da imprensa, por sua habilidade de andar sobre as casas, de entrar nelas pelos telhados e roubar ricos – sempre sem usar a violência –, e de fugir espetacularmente dos presídios. Foram dezessete escapadas desde a infância, passada em Pisa, na Itália, onde a pobreza o levou a cometer os primeiros furtos. Nascido em 1878 – segundo ele mesmo; para alguns biógrafos, seu nascimento se deu em 1888 –, Gino chegou homem feito à capital paulista, depois de desembarcar em Santos no ano de 1913. Já tinha um histórico de roubos, prisões e fugas na Itália e na França, e veio para o Brasil porque era, segundo contava, um homem marcado na sua terra. Histórias de sucesso de uma tia e de outros italianos que viviam em São Paulo o atraíram e o incentivaram a buscar o sustento na cidade de maneira honesta. Mas sua vida boêmia atrapalhava tudo. O dinheiro que Meneghetti ganhava na fábrica de chocolates Falchi era pouco para seus hábitos de frequentador da noite e apreciador do vinho chianti. Por isso, Gino largou o emprego e foi morar numa pensão, onde encontrou o amor de sua vida, Concetta Tovani, e conterrâneos que o reconduziram aos roubos. Passou a vender revólveres repassados por eles, que diziam ser contrabandistas de armas. Armas que, na verdade, eram roubadas. Meneghetti caiu numa armadilha policial, e em março de 1914 foi preso pela primeira vez em território brasileiro, e condenado a oito anos de prisão. Na cadeia, junto com outros presos, tentou cavar um túnel, mas um detento delatou o plano e o acusou de ser o mentor da ideia. Por isso, o italiano foi colocado nu em um poço, fechado por cima com uma grade. Foi aí que começou sua fama: numa noite fria do mês de julho de 1915, ele escalou o poço com um pé em cada parede e conseguiu arrancar uma das barras de ferro, mas o espaço aberto era pequeno. Mesmo assim, ele atravessou o vão apertado, deixando pedaços de pele nas barras, fugiu pelo telhado e desceu perto do Jardim da Luz. Era uma hora da manhã. Nu, no meio da garoa paulistana, conseguiu despistar um guarda e seguiu rumo à casa da tia para obter roupas. Os jornais fizeram grande estardalhaço, e ele passou a ser um homem procurado. Abusado, voltou a praticar furtos e deixava recados nas casas roubadas. Como no palacete da baronesa de Arary, onde ele a alertou para que escolhesse melhor seu fornecedor, pois suas joias eram quase todas falsas. Também escrevia com frequência cartas para os jornais gozando a polícia. Atitudes como essas o tornaram um mito, uma espécie de Robin Hood de São Paulo. No entanto, embora ajudasse os pobres – segundo algumas lendas, ele comprava alimentos para pessoas humildes que chegavam aos armazéns sem dinheiro suficiente –, não praticava seus furtos com essa finalidade. Mas havia um outro motivo para a sua fama: ele nunca praticava qualquer ato de violência. “Jamais roubei um pobre. Só me interessa tirar dos ricos, e tirar joias, que são bens supérfluos que só servem para alimentar a vaidade”, dizia, coerente com seus ideais anarquistas. Quando criança,na Itália, Meneghetti já se sentia injustiçado por ser muito pobre, enquanto havia ali perto pessoas muito ricas, que desperdiçavam comida. Ele foi criando uma “consciência de classe” desde essa época. Leu muito, estudou. Já chegou ao Brasil adepto do anarquismo. Seus furtos ocorreram em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em toda a Região Sul e até no Uruguai. Foi preso em vários estados, mas sempre conseguia fugir e voltar para São Paulo. Relatos fantasiosos diziam que ele usava molas nos pés para poder escapar da polícia saltando da rua para os telhados quando ficava acuado. Seu heroísmo era reforçado porque ele fazia com a polícia o que os pobres, constantemente perseguidos e discriminados, gostariam de fazer. Cansada, em 1926 a polícia armou um cerco em torno da casa na Rua dos Gusmões, no Centro da cidade, onde moravam sua mulher e seus filhos. Meneghetti sabia da armadilha, mas uma noite, um tanto alcoolizado, resolveu procurar a família. Acabou encurralado e, como sempre, subiu no telhado atrás de uma rota de fuga. Mas todo o quarteirão estava cercado. “Havia mais policiais do que paralelepípedos”, disse ele posteriormente. Informada, a população correu em massa para lá. Cerca de 50 mil pessoas, segundo os jornais, esperavam para ver como Meneghetti conseguiria fugir. Numa das várias tentativas de alvejá-lo, o delegado Waldemar Dória acabou sendo atingido por uma bala e morreu. O ladrão foi acusado do crime, coisa que negou até o fim da vida. Mais tarde ficou provado que ele tinha razão, pois foram tiros de calibre 38 que acertaram Dória nas costas – Gino portava um revólver 32. Algum desafeto do delegado o matou, aproveitando a ocasião. Às 11h15 da manhã, Meneghetti finalmente se entregou. O fascínio daqueles que o viam como um herói bandido popular subitamente se transformou em ódio, enquanto a população o vaiava e fazia ameaças. Muito torturado, Gino foi posto numa cela da “Bastilha do Cambuci”, um presídio de péssima fama, para onde eram enviados os inimigos do regime.Mesmo assim, sozinho numa cela, era vigiado 24 horas por dia. Ficou trancafiado até que fosse construída, especialmente para ele, uma cela blindada. Sua agonia era tanta que havia momentos em que ele gritava repetidamente “Io sono um uomo” (eu sou um homem), para reclamar do tratamento desumano ao qual vinha sendo submetido. Mas sempre que o ladrão começava a protestar, um policial se aproximava do cárcere, cuspia e jogava fezes em sua direção, antes de submetê-lo a mais uma sessão de tortura. Com medo de ser envenenado, Meneghetti “lavava a comida” que recebia. Certa vez, contou ao jornalista Orlando Criscuolo (1917-1992)que, quando um rato entrava em sua cela pelo buraco do esgoto, ele o deixava comer um pouco de sua comida, tampava o buraco e esperava para ver se o roedor não morria. Só depois é que Gino se alimentava. Quem morreu de infarto nessa época foi Concetta, que deixou os filhos Lenine e Espártaco – nomes que homenageavam o revolucionário russo de 1917 e o líder de uma revolta de escravos na Roma antiga – com parentes. Libertado 18 anos depois, em 1944, ele encontrou uma cidade diferente, cheia de arranha-céus e inviável para um gato dos telhados. Mesmo assim, o mito persistia; prova disso foi a multidão que o esperava na saída da cadeia. Para que pudesse viver “honestamente”, Meneghetti foi trabalhar em uma banca de jornal, mas não abandonou o hábito de roubar. Acabou sendo preso várias outras vezes, até 1970. Numa das suas saídas da cadeia, na década de 1950, ele foi morar uns dias na casa de Criscuolo, que se tornara seu amigo. A mulher do jornalista, Iracema, ciente da fama do ladrão, ficou com medo. Mas o homem que recebeu em casa era um sujeito simpático, cortês, culto, que gostava de contar histórias para crianças. Por conta desse perfil, sua fama chegou a outros países. Quando o escritor e filósofo Albert Camus (1913-1960) esteve em São Paulo em 1949, ele fez questão de incluir em seu roteiro uma visita ao ladrão, que passava uma temporada encarcerado. Na despedida, o autor francês perguntou se podia fazer alguma coisa por ele. Meneghetti respondeu: “Sim, me dê um cigarro”. O ladrão, que adotou vários nomes falsos e declamava versos do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), passou seus últimos anos pobre, dependendo dos filhos, até morrer de trombose em 1976, aos 98 anos. Entre uma prisão e outra, Gino chegou a acumular fortunas, mas cada centavo que obteve foi confiscado pela polícia. Até hoje, Meneghetti é visto pelos paulistas como um exemplo do “bom ladrão”: amado pelos pobres e temido pelos ricos. Anarquista, admirador da Revolução Russa, respeitador das mulheres e das crianças, venerado e odiado – e nem por isso vingativo –, ele dizia: “Só não fiz em São Paulo o que eu não quis”. E, ao contrário de muitos homens supostamente honestos, tinha a sua ética: “Sempre detestei homens que malbaratam o dinheiro público”. Mouzar Benedito é jornalista e autor do livro Meneghetti, o gato dos telhados (Boitempo Editora, 2010). MENEGHETTI, O GATO DOS TELHADOSMouzar Benedito resgata a história de Gino Meneghetti, o anti-herói italiano que ganhou notoriedade por seus roubos e fugas espetaculares em São Paulo“Minha primeira visão do mundo foi a cidade de Pisa, com sua torre inclinada. Tal como a torre, também o meu destino estaria sempre inclinado, cai-não-cai”. A frase de Gino Amleto Meneghetti já indica a trajetória incomum desta personagem da vida real. A história do larápio que fez fama na Pauliceia de meados do século XX será retomada na obra Meneghetti: o gato dos telhados, de Mouzar Benedito, que será lançada na próxima quinta-feira, dia 28. |