PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 12 de setembro de 2013.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/


 


ENTREVISTADA: EURIDES GIMENES CASAGRANDE

 

Eurides Gimenes Casagrande nasceu a 12 de agosto de 1935, no município de Piracicaba. Filha de João Domingues Gimenes Filho e Isabel Alonso Gimenes que tiveram quatro filhos: João, Diogo,Eurides e Aparecida. Seus avós maternos e paternos imigraram da Espanha, os paternos adquiriram uma área com mais de 100 alqueires de terra, a uns trinta quilômetros de Piracicaba. Ela tem paixão por animais, pela vida rural, embora resida na cidade, com sua picape Pampa vai sozinha toda semana até o sítio de sua propriedade. Lá é recepcionada com muita alegria pelo seu cão de estimação que sem nenhuma cerimônia cumprimenta ao seu modo a sua amiga, entra na picape e a acompanha até a abertura da casa da sede do sítio. Patos, pavões, galináceos, desfilam pelo terreno. Eurides e sua família sempre levaram uma vida de muito trabalho. Aos 11 anos ela já montava em sua égua e conduzia as vacas que estavam mais afastadas para serem ordenhadas pela sua mãe.
Conheceu seu marido quadrando jardim, um bom hábito cultivado pela juventude da época. Os rapazes circulavam a praça central em um sentido enquanto as moças andavam no sentido contrário. Foi assim que surgiram muitos namoros e casamentos. Eurides foi funcionária da famosa Fábrica de Bolachas Cacique.  

Qual era a atividade principal desenvolvida no sítio?

Era a criação de gado leiteiro. Criavamos também animais de médio e pequeno porte, como porcos, galinhas. As plantações eram feitas principalmente para alimentar os animais. A renda familiar vinha da comercialização de leite, meu tio trazia os latões de leite para a cidade com uma caminhonete velha de sua propriedade.

Com que idade a senhora começou a trabalhar no sítio?

Eu tinha onze anos quando comecei a ajudar a minha mãe na leiteria. Eu montava na Baia, uma égua marrom,  muito mansa, para subir tinha que encostá-la em um barranco. Ia com ela ao encontro das vacas que estavam mais distantes, elas já sabiam que era para virem em direção a mangueira onde minha mãe as ordenhava. Ela já era viúva, meu pai faleceu quando eu ia completar nove anos. As vacas eram muito mansas, vaca brava minha mãe vendia. Quando minha mãe ficou viúva tínhamos mais de trinta vacas. Às cinco horas da manhã ela já se levantava para tirar leite.

Mesmo trabalhando a senhora ia à escola?

Estudava, a escola se chamava Escola Mista da Fazenda Figueira. Lá só estudava-se até o terceiro ano. Minha primeira professora foi Dona Angélica, a segunda professora foi  Dona Lavínia, a terceira Maria de Lurdes Frota Escobar, que mais tarde tornou-se minha tia ao se casar com meu tio. Nós entravamos na classe, ninguém falava nada, a primeira coisa que fazíamos era cantar o Hino Nacional, em pé, com a mão sobre o coração. Na parede havia um quadro enorme com a fotografia de Getúlio Vargas.

A mãe da senhora fazia o pão que a família consumia?

Boa parte da nossa alimentação provinha do próprio sítio, o pão era feito em casa, a lingüiça era caseira.

Com que idade a senhora veio junto com sua família, residir na cidade de Piracicaba?

Quando mudamos para cá eu tinha catorze anos. Nós alugamos o sítio para um tio e viemos para a cidade, fomos morar em uma casa alugada por nós e situada na Rua Dr. Otávio Teixeira Mendes, no Bairro Alto. Ali eu a minha mãe fazíamos marmitas, antigamente era uma atividade chamada “dar pensão”. A comida era separada em cinco ou seis marmitas presas a um varal com uma alça para transportar. Muitas famílias iam buscar, ou então eu ia levar até a casa delas. Da Rua Dr. Otávio eu ia com dois jogos de marmitas pesadas lá perto da Igreja Bom Jesus, a pé. Com essa atividade minha mãe ia nos mantendo. Quando ela parou com o fornecimento de marmitas eu fui trabalhar na Fábrica de Bolachas Cacique, lá trabalharam também meu irmão e minha irmã. A Cacique ficava na Rua Santa Cruz, sua proprietária era Dona Augusta, que foi dona também da Padaria Vosso Pão, onde hoje se situa o Edifício Canadá, na esquina da Rua Santo Antonio com a Rua Prudente de Moraes.

Que tipos de bolachas eram fabricadas na Cacique?

Fazíamos as bolachas: maisena, Maria e a água e sal. Eu ligava a máquina, a estampa ia cortando a massa, iam à assadeira, outras duas moças colocava-as no forno que tinha de 12 a 15 metros de comprimento, as bolachas saiam assadas na outra extremidade. Lá existiam dois batedores, batiam em uma caixa, havia as mesas do lado onde eram empacotadas. Trabalhei na Cacique por uns dois anos, uma semana eu trabalhava das cinco horas da manhã até uma e meia da tarde. Na semana seguinte da uma e meia da tarde até as dez horas da noite. Minha mãe me colocou em uma escola de costura situada próxima ao Líder Bar, na Rua Governador Pedro de Toledo. As aulas eram após o almoço, começava a uma hora da tarde, existiam mesas grandes, as professoras ensinavam a fazer o molde, cortar, tirar as medidas.
A senhora costurava qualquer tipo de roupa?

Só costurava roupas femininas. Eu tirava a medida, pegava o pano, fazia o molde, cortava e costurava. Usava-se muito tecido de algodão, tafetá (Tafetá é um tecido fino e acetinado feito de seda). Comecei a trabalhar em casa, minha mãe tinha uma máquina de costura Singer, para funcionar tinha um pedal que transmitia a força dos pés para uma correia e movimentava a máquina. Costurei mais para as pessoas de casa, parentes, amigas.



Foi nessa época que a senhora conheceu seu futuro marido?

Aos 16 anos conheci José Erasmo Casagrande. Antes de completar 19 anos nos casamos, foi no dia 25 de julho de 1953. O casamento foi realizado na Igreja Bom Jesus pelo Padre Martinho Salgot. No tempo em que eu namorava às 10 horas da noite tinha que estar dentro de casa, a cavalaria (soldados montados a cavalo) andava pelo bairro inteiro. Eles davam “um pega”,  ficavam bravos, com quem estivesse na rua depois de 10 horas da noite. A cidade parava, tinha muitos cavalarianos, e impunham respeito. Quando eu morava no Bairro Alto na Rua Moraes Barros esquina com a Rua Visconde do Rio Branco havia a sorveteria do Seu Florindo, era só lá que pegávamos sorvetes.

Qual era a profissão do seu marido?

Era pedreiro. Casamos e fomos morar na Rua XV de Novembro, um pouco acima do Cemitério da Saudade. Na época não havia muitas casas naquela região, havia muitas chácaras. Residimos ali por uns três anos, nessa casa nasceu a minha filha Sonia. Continuamos morando na mesma rua, mas mais abaixo, onde nasceu o nosso filho Celso, voltei a morar na Rua São José, próximo a Igreja Bom Jesus, passado uns tempos, meu sogro nos deu um casarão situado na Rua Moraes Barros, após passar o cemitério. Era conhecido como Bairro Casagrande, tinha muitas famílias com o sobrenome Casagrande. Lá eu tive minha filha Sandra. Para nos locomovermos usávamos o ônibus que passava em frente ao cemitério.

A senhora trabalhava na época?

Por três anos fui proprietária do Bar Furlan, situado na Rua XV de Novembro, tinha boche, as bolas eram feitas de madeira, mais tarde que vieram as bolas de massa. ( Ou bocha, consiste em lançar bochas (bolas) e situá-las o mais perto possível de um bolim (bola pequena), previamente lançado. O adversário por sua vez, tentará situar as suas bolas mais perto ainda do bolim, ou “remover” as bolas dos seus oponentes). Esse bar existe até hoje. Eu fazia polenta com frango para a turma de boche quando faziam torneio. Também fazia os salgados que eram vendidos no bar. A noite era meu marido quem tomava conta do bar. A nossa casa era junto ao bar. Em 1969 vendi o bar e fui morar na Avenida Dona Jane Conceição esquina com a Rua da Palma, na Paulista. Eu ia de ônibus até São Pedro, pegava malas de tecido com o bordado riscado, bordava, levava de volta para São Pedro. Bordava só o Ponto Rococó. Por uns cinco anos eu exerci essa atividade.

Qual foi a sua próxima atividade?

Fui limpar casa, fui ser faxineira. Limpava para a minha tia Araci Gimenes, irmã do meu pai, casada com Otávio Sturion, ele e seus irmãos Ermelindo e Mário eram os proprietários da Casa Três Irmãos. Permaneci nesse trabalho por um ano aproximadamente.  Meu filho Celso começou a trabalhar com onze anos. Eu comprava leite, e ele ia vender até a Escola Nossa Senhora da Assunção. Comprei um carrinho de mão, verdinho, guardo até hoje no sítio os engradados aonde iam os litros com a tampa de plástico. Eu enchia os litros de leite, tampava e ele ia vender. Meu irmão trazia o leite, eu comprava dele. Depois a fiscalização não permitiu mais a venda de leite em via pública. Só podia ser vendido leite pasteurizado.

O que a senhora fez?

Fui até uma horta de propriedade do Seu Inácio, situada no Bairro Jaraguá,  eu comprava canteiro de verduras, Seu Inácio cortava, fazia os maços de verdura e o meu filho Celso ia, enchia o carrinho de verdura, e fazia o mesmo percurso, até a Escola Assunção. Tenho até hoje uma cadernetinha que o Celso marcava o nome do freguês para quem ele vendia fiado, quanto era o lucro, quanto eu tinha que pagar para o Seu Inácio no dia seguinte, ele fazia essa contabilidade na rua, chegava e dizia: “Está aqui mãe, o dinheiro. Este daqui é da senhora, esse outro é para pagar o Seu Inácio”.  A noite ele estudava na Escola Estadual Professor AlcidesGuidetti Zagatto. Minha filha Sonia foi trabalhar na Padaria Suiça do meu tio Francisco Castilho, vivo até hoje, com 104 anos. A minha outra filha, alguns anos depois, aos 14 anos foi trabalhar em um pequeno escritório, em seguida foi trabalhar na famosa Casa Raya, de material esportivo. Meus três filhos sempre estudaram em escola pública, e os três concluiram o curso superior de Administração de Empresas.

Atualmente a senhora é proprietária de um sítio?

Herdei um sítio do meu pai. Quando meu avô Gimenes repartiu a fazenda com os filhos, a parte do meu pai ficou com a minha mãe. Ela dividiu para os quatro filhos.

Quando a senhora era mocinha qual era a sua forma de lazer?

Na época era habito das moças e rapazes quadrar o jardim. Frequentava muito pouco o cinema.

A senhora segue alguma religião?

Sou Católica Apostólica Romana. Frequentava as Igrejas Bom Jesus, Catedral, dos Frades, São José.

A senhora chegou a usar véu durante a missa?

Para comungar se fosse solteira usava véu branco na cabeça, e se fosse casada usava véu preto.

A senhora gostava de ouvir rádio?

Gostava muito do Atinilo José. Lembro-me até hoje quando o radialista Ary Pedroso terminava o seu programa dizia: “- Obrigado Senhor! Para todos que tem um lar para voltar!”.

No ponto de vista da senhora as mudanças de comportamento ocorridas nesses anos foram melhores ou piores?

Acho que as mudanças ocorridas no relacionamento humano pioraram muito. Hoje temos muito mais ofertas de bens materiais do que naquela época, Tudo era meio esticado, para tomar um refrigerante só em ocasiões muito especiais, como casamentos, batizados, Natal. Não existia geladeira. Minha mãe matava um porco, passava o dia inteiro picando. Fritava todos os pedaços no fogão a lenha, pegava latas de 20 litros que tinham sido usadas para o transporte de querosene, lavava-as muito bem, conforme ia fritando com toda a gordura despejava, enchia de duas a três latas com carne, torresmo, gordura. Elas tinham um aro, eram tampadas as bocas das  latas com um pano preso pelo aro. Amarrava uma tira de pano, na madeira do telhado havia um gancho, as latas ficavam dependuradas lá, livres de insetos ou roedores. Cada vez que ia almoçar ou jantar, ela pegava a lata, esquentava aquela carne, aquilo era a “mistura” (acompanhamento) da refeição. A outra opção era fritar um ovo. Meus filhos Sonia e Celso iam assistir televisão no vizinho, o famoso “televizinho”, eles iam a um bar de propriedade da Dona Helena e do Seu Pedro, isso no Bairro Alto. Eles perguntavam-me: “- Mãe! Posso ir na Dona Helena assistir televisão?”. Eu os deixava irem.

O marido da senhora chegou a ter automóvel?

O primeiro carro ele adquiriu de um cunhado que morava em São Caetano, era um Buick, depois ele teve um DKW, mais tarde um Fusca (Volkswagen sedã). Eu tinha quase quarenta anos quando tirei carta (habilitação) de motorista. Meu marido comprou uma Belina I, mais tarde uma caminhonete, vendemos o sítio e adquirimos outro mais próximo da cidade, a uns 15 quilômetros, são nove alqueires de terras no bairro rural da Água Bonita. Compramos já faz 20 anos. Nessa época adquirimos uma caminhonete Pampa. Quando meu marido era vivo nós tínhamos gado, tratava no cocho. Depois que ele faleceu a 19 de agosto de 2005. vendi tudo. Gado, cavalos.

A senhora dirige até hoje?

Dirijo, vou sozinha, eu e Deus.

E se furar um pneu?

Levo meu celular, ligo para meus filhos. Se eu me esquecer de ligar dizendo que já cheguei, meus filhos já ligam para saber. Eles cuidam muito de mim. Essa educação, esse carinho, reflete na formação dos meus sete netos, que me chamam de mãe-avó. O que me ajudou a vencer todas as dificuldades foi a minha fé e os meus filhos.

Seus filhos nasceram em hospital?

A Sonia e o Celso nasceram em casa, com auxilio de parteira, a Sandra nasceu na Santa Casa de Misericórdia de Piracicaba, o médico foi o Dr. Matheus. Na época era costume ter os filhos em casa. Havia o resguardo de 40 dias após o parto. Não usei fralda descartável para nenhum dos meus filhos. Eu comprava o tecido e fazia as fraldas, fazia a bainha a maquina em todas. Existia a calça plástica. Até os netos mais velhos não usaram fraldas descartáveis.

O que a senhora vê no sítio que acha tão bom?

Gosto de ir lá ver, tenho um cachorro no sítio, o Tufão, toda vez que chego ele quer me abraçar, abro a porta da caminhonete ele sobe, me cheira, morde devagarzinho a minha mão. Enquanto não vou abrir a minha casa ele não para de pular e chamar a atenção. Depois do almoço, deito no sofá ele deita no tapete,dorme, chega a roncar. No sitio tenho galinha, pavão, ganso, pato, peru, cordeira, carneiro. Arco-Íris é o nome de um dos pavões, é um pavão raro, tem penas de todas as cores, inclusive brancas. Outro pavão é o Pitu.

A senhora abate os animais?

No meu sítio eles morrem de morte natural.

 

 

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