JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 11 de dezembro de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
ENTREVISTADO: RICARDO ABE
Os poetas que aclamam Piracicaba em prosa e verso inúmeras vezes citam a elevada cultura do seu povo. Quem não conhece a cidade em toda a sua abrangência pode até imaginar que a verve do artista é simpática a Noiva da Colina. O imenso manancial de cultura e conhecimento que Piracicaba acumula há muitas décadas fazem dela uma cidade muito especial, de capital importância no cenário brasileiro e mesmo mundial. Quem tiver curiosidade a respeito pode colecionar os inúmeros fatos relatados diariamente pela nossa mídia. Muitos desses elementos nós conhecemos pela constante exposição nos mais diversos meios de comunicação, outros preferem colocar a sua obra acima da imagem pessoal, para quem os conhece, e pode avaliar a sua importância, eles são verdadeiros gurus. Temos inúmeras pessoas nessas condições em Piracicaba, estão influenciando a história da humanidade aqui mesmo da nossa cidade. Ricardo Abe é uma dessas pessoas, que em sua simplicidade, como matemático têm realizado proezas, é consultado por mestres e doutores, não só do Brasil como do exterior. Seu pai foi oficial da marinha japonesa, Ricardo é um dos primeiros filhos de imigrantes japoneses a formar-se em curso superior, parece ter apontado a direção á milhares de outros jovens descendentes de japoneses que encontraram na carreira universitária a chave para o sucesso. Nascido em 15 de fevereiro de 1939, tem mais quatro irmãos: Antonio, Marisa, Fernando e Claudio. Casado com a professora Cecília é pai de três filhos: Marcelo, Verônica e Veridiana.
Qual motivo trouxe o seu pai ao Brasil?
Ele era de uma família de posses, em 1935 achou que o Japão poderia entrar em algum tipo de conflito, decidiu então imigrar para o nosso país. Trabalhou em São Paulo a principio no consulado do Japão, depois montou uma lavanderia na Rua Tabatinguera,
Em 1938 ele estabeleceu-se em Piracicaba, montou uma tinturaria na Rua Prudente de Moraes, onde hoje é a Câmara Municipal. Na esquina da Rua Prudente de Moraes com a Rua Alferes José Caetano morava o Santos Bueloni, que foi padrinho de batismo do meu irmão Antonio e da minha irmã Marisa, meu pai era xintoísta, minha mãe era budista, havia uma movimentação de religiosos, padres e freiras que procuravam incentivar o batismo do meu irmão, meu e da minha irmã. O meu padrinho de batismo foi o José Francêz. Nós três fomos registrados no consulado japonês, pelo meu pai, com o nome japonês: eu como Kionobo, o meu irmão Antonio como Kiotomo e a minha irmã Marisa como Kimico, os padrinhos de batismo se empenharam para que recebêssemos nomes próprios usuais no Brasil. Só depois de adulto é que fiquei sabendo que tinha sido registrado como Kionobo no consulado do Japão. Fomos fotografados pelo Lacorte, que deixou exposta á vista do público a fotografia de dois japonesinhos, a curiosidade do povo era em saber quem eram as duas crianças, não era comum fotos de crianças japonesas na cidade. Watanabe era casado com uma descendente de árabe, tinha um restaurante no centro, ao lado do Teatro Santo Estevão. Na época os japoneses estavam fixados na zona rural, eram raros os que moravam na zona urbana.
Onde o senhor iniciou seus estudos?
Fiz o primário no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, o ginásio eu estudei no Colégio Dom Bosco, quando ele começou as suas atividades, funcionava no prédio situado na Rua Alferes José Caetano, ao lado da Igreja dos Frades, onde depois funcionou o Colégio Dr. Jorge Coury. Após certo tempo o primeiro pavimento do Colégio Dom Bosco foi construído no local onde até hoje funciona. Fui aluno da primeira turma do Dom Bosco, isso foi no ano de 1955. O diretor era o Padre Pietro Baron os padres Afonso, Brás, lecionavam, assim como os professores Cotrin, Monteiro. Fui estudar no Sud Mennucci, onde conclui o científico. Eu queria estudar matemática ou física, prestei vestibular na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, entrei e fui aluno da primeira turma, isso em 1959. Os professores do curso de matemática eram todos professores vindos do ITA. Existiam 20 vagas, apenas sete alunos entraram, tínhamos sete professores para sete alunos. Fiquei morando em Rio Claro, nessa época meu pai era proprietário de uma pastelaria, localizava-se na Praça da Catedral, ao lado da igreja, vizinho ao prédio onde atualmente funciona o Bistecão, havia o Bar Santa Terezinha, meu pai ocupava um pequeno espaço e com esse espaço ele me sustentou em Rio Claro, e o meu irmão na Faculdade de Odontologia. Até hoje o pastel do Abe é lembrado por quem os consumia.
O senhor sabe fazer pastel?
Sei! Outro dia fiz 400 pastéis em uma festa de confraternização que houve no edifício onde moro. Para fazer pastel é necessário apenas água, farinha e óleo. Só!
O senhor destacou-se em seus estudos na faculdade?
Fui monitor de um professor de física, chamava-se Heitor Gurgulino de Souza, que foi o primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos, reitor da Faculdade da UNESCO em Tóquio, Ele foi presidente do Conselho Federal de Educação. A faculdade pagava ao monitor um salário, eu morava em um apartamento no único prédio existente em Rio Claro, em frente ao Cine Variedades. Alugaram para nós pelo fato de sermos os primeiros estudantes universitários da cidade de Rio Claro. Éramos muito estimados pela população!
Quem mais morava nesse apartamento?
De Piracicaba eram cinco: Alceu Marozzi Righetto, Canarinho que veio a ser goleiro do XV de Piracicaba, Paulo Adão Monteiro, Rubens Ferreira de Amaral Mello. O Natalino Molfetta era de São Carlos. A estrada para Rio Claro era de terra, terrível, a viagem durava uma hora e meia, quando chovia era difícil, a viagem durava duas horas, duas horas e meia. O curso teve quatro anos de duração. Embora tenha feito o curso de matemática eu gostava muito do estudo da física. Um dia o Professor Heitor Gurgolino telefonou dizendo: “-Quero que você venha para os Estados Unidos, com a melhor bolsa deste país!”. Eu não podia ir, tinha perdido meu pai recentemente.
Como foi a sua relação com o estudo de física nuclear na USP?
Na época éramos poucos alunos, quem se destacava era imediatamente empregado. Quando me formei recebi sete empregos na mão, inclusive para lecionar no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA. Escolhi o pior: pesquisador em física, eu tomava conta do laboratório de física e trabalhava com radioisótipos, nas férias íamos à Cidade Universitária, em São Paulo, utilizar o gerador de Van de Graaff (Máquina empregada em física nuclear para produzir as tensões muito elevadas necessárias em aceleradores de partículas). Além do Van de Graaff havia o Bétatron (Primeiro acelerador de partículas do Brasil) e o Reator Atômico. Isso foi entre 1961 a 1962, era um estudo avançadíssimo, só existia em São Paulo, eu ia fazer doutorado em Física Atômica Nuclear. Eles nos chamavam de Rio Claro porque em São Paulo não havia alunos de física. Eles queriam criar uma nova mentalidade na área de física. Permaneci nessa atividade até a morte do meu pai, quando tive que voltar á Piracicaba, retornando a estaca zero. Eu formado como professor e meu irmão formado como dentista, voltamos a trabalhar na pastelaria. Meu pai faleceu em março de 1963. Ainda estudante em Rio Claro todos os fins de semana eu permanecia trabalhando na pastelaria para o meu pai descansar.
A partir de quando o senhor passou a lecionar matemática?
Eu trabalhava na pastelaria, não sei como as escolas descobriram que eu era licenciado em matemática, os colégios começaram a insistir para que eu desse aula, em agosto de 1963 comecei a lecionar física e matemática no Colégio Piracicabano. No ano seguinte dei aula no Jorge Coury, Jerônimo Gallo, Piracicabano, Sud Mennucci e Dom Bosco. A Faculdade de Ciências Econômica, Contábeis e Administração de Empresas foi a primeira faculdade aberta pela UNIMEP, fui o primeiro professor a ser contratado para lecionar matemática. O diretor na época era Gustavo Jacques Dias Alvim, dei aula na UNIMEP por 43 anos. Na UNIMEP fui diretor da Faculdade de Ciências Exatas, em 1979 fui convidado a assumir temporariamente a administração da Faculdade de Engenharia no campus de Santa Barbara D`Oeste, permanecendo inicialmente por três anos como diretor, consegui montar um laboratório perfeito e uma biblioteca técnica de alto nível, sempre trabalhei muito com o apoio dos alunos..
Quando o senhor iniciou suas aulas na Escola de Engenharia de Piracicaba, a EEP?
O curso de engenharia foi iniciado em 1968, em 1969 entrei para dar aulas de Cálculo II, matéria que permaneci lecionando até 2001. Fui diretor da Escola de Engenharia de Piracicaba de 1986 a 1989. O Secretario da Educação era José Aristodemo Pinotti, consegui que ele transferisse os equipamentos que estavam na Escola Industrial, cerca de quarenta tornos, que foram colocados aos cuidados da EEP. Estabeleci regras para estágios dos estudantes com excelente aproveitamento prático junto a grandes indústrias. Um aluno de engenharia civil e um aluno de engenharia mecânica eram levados pela Petrobras para estagio. Visitava com os alunos e tinha convênios com empresas como Volkswagen, Ford, Philips, Embraer, Bosch. Sempre fui um diretor participativo, não era diretor de gabinete. Empresas que só recebiam alunos da Politécnica abriram as portas para os alunos da EEP.
O que significa a matemática para o senhor?
O grande problema da matemática é que se diz para decorar as suas fórmulas. Sempre falo, não é para decorar nenhuma fórmula! A matemática não é fórmula você tem que saber o que está fazendo. Não é preciso decorar a fórmula para resolver um problema. No antigo primário estudava-se matemática com aritmética, é uma escola francesa. Para estudar matemática tinha que raciocinar. Com a revolução de 1964 começou a entrar os americanos, que são práticos, No Brasil dispensou-se a escola francesa e permaneceu a escola americana. Esse foi o grande erro cometido no ensino da matemática. Estudar matemática era gostoso porque se pensava. Atualmente as faculdades não preparam os alunos em matemática. O matemático clássico conhece tudo a respeito de matemática, mas, se perguntar onde poderá ser aplicada, ele não saberá responder. A matemática serve para quantificar qualquer tipo de fenômeno físico, químico, biológico, consegue-se determinar uma fórmula para cada situação.
O senhor tem um profundo conhecimento de matemática!
Na matemática não se descobre mais nada! O teorema de Fermat faz 350 anos que foi formulado por ele e ninguém conseguiu provar até agora, ninguém consegue, ficam 40 a 50 anos trabalhando para demonstrar o teorema e ninguém conseguiu. A única coisa que pode ocorrer é quando surge um ramo de uma ciencia, a função da matemática é estudar e quantificar, reduzir a uma fórmula; se for um fenomeno fisico de astronomia tem que se conhecer astronomia.
A informatica ajudou muito o estudo da matemática?
Qualquer coisa que você necessitar da matemática está na internet. De vez em quando surge algum problema, um ex-aluno meu dá aulas particulares, esses dias ele me procurou, um dos seus alunos trouxe um problema de matemática para o qual ele não está encontrando solução. Resolvi na hora geométricamente, não preciso de fórmula matemática.
O senhor recebe consultas do Brasil todo?
Tem muita gente que me consulta, são problemas classicos que não estão no livro. Uma empresa de engenharia de Minas Gerais me consultou a respeito do cálculo de uma ponte. Há professores de universidades de São Paulo que foram meus alunos muitas vezes me consultam. As vezes um professor de concreto afirma que determinada fórmula ditada pela norma técnica deve ser aplicada, se um aluno pergunta como se deduz aquela fórmula ele não saberá responder, ele a recebeu já pronta. Nessa hora esse professor me telefona perguntando como se deduz aquela fórmula. Mando a resposta por e-mail.É natural fazer isso na matemática. As normas tecnicas de engenhria mudaram, antigamente vinham muitas normas prontas, agora as normas tem dedução de tudo. Recebi uma consulta de uma empresa que estava vendendo casas financiadas, de acordo com uma tabela apresentada os compradores teriam suas casas após determinado tempo, fiz os cálculos, cheguei a conclusão de que usando aquela tabela nunca ninguém iria receber nenhuma casa mediante as parcelas que estavam pagando.
Foi desconhecimento ou proposital?
Foi proposital. A empresa encerrou suas atividades. Toda tabela tem uma lógica, se contrariar a lógica está errada. Quando o homem quer manipular ele manipula. Contabilidade é matemática.
O senhor tem alguma relação com a Nasa?
Eu não, quem tinha era o meu professor Nelson Onuchic que dava acessoria para a NASA, eu trabalhava com ele,era seu aluno, aprendi com ele em pós graduação sobre a estabilidade das soluções das equações diferenciais.
Tanto o senhor como seu irmão foram os primeiros descendes de japoneses de Piracicaba que seguiram a carreira universitária?
O fato do meu pai ter sido oficial da marinha japonesa influenciou bastante na sua maneira de pensar, ele dizia que todos os seus filhos deveriam estudar, escolher a profissão que desejassem. O Komatsu que tinha pastelaria em frente a estação de trem, queria que todos os filhos fizessem medicina, três formaram-se médicos. O Natálio Komatsu foi o primeiro descendente de japonês de Piracicaba a diplomar-se em um curso superior, em seguida fomos meu irmão e eu, e depois o Francisco Komatsu. Na época havia uma tendência na colônia japonesa do jovem trabalhar duro na lavoura, nós como estudantes universitários éramos vistos com alguma reserva, uma espécie de bon vivant! Com o passar dos anos reconheceu-se a importância de uma profissão com solida formação universitária.
O seu irmão Antonio jogou no Unidos Futebol Club, de Piracicaba, o senhor jogava futebol?
Eu não jogava futebol, de vez em quando jogava no gol, aos nove anos de idade pesava 80 quilos! Hoje peso 62 quilos!
O senhor pratica algum esporte?
Gosto muito de caminhar, perdi oito quilos nos últimos meses caminhando e diminuindo o sal e o açúcar da alimentação.
Qual assunto aborda o livro que o senhor está escrevendo?
É um livro de matemática aplicada, estou com 1.200 páginas já escritas. Há duas editoras com interesse nele.

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