JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 06 de novembro de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
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ENTREVISTADO: MAESTRO ERNEST MAHLE
Maria Aparecida R. P. Mahle, Ernest Mahle e a Escola de Música de Piracicaba são nomes tão associados que parecem constituir uma única família. Ao piracicabano é impossível ver a Escola de Música de Piracicaba sem imediatamente associar a imagem ao casal, escola da qual foram co-fundadores e grandes beneméritos, voluntários, que no Brasil é sinônimo de trabalhar pelo prazer de servir. Por 50 anos tiveram participação decisiva e efetiva na condução da Escola de Musica de Piracicaba. Hoje afastados da direção da Escola de Musica de Piracicaba continuam produzindo novas obras, compondo, regendo, ensinando, vivendo e respirando música com toda intensidade. Esbanjam energia, vitalidade e criatividade. Conforme o site da Universidade Metodista de Piracicaba (http://www.unimep.br/gdc_setores.php?fid=37): “Durante o processo de gerenciamento e ampliação, muitas foram as lutas e conquistas do casal Mahle, tanto no nível artístico como na obtenção de instalações adequadas. Em setembro de 1998, ao completar 46 anos, o casal Mahle demonstrou o desprendimento ao transferir a escola para o Instituto Educacional Piracicabano (IEP), entidade mantenedora do Colégio Piracicabano e da Unimep.” Após 50 anos ininterruptos de abnegado trabalho voluntário na direção, o casal Mahle em janeiro de 2004 deixou de conduzir a Escola de Musica de Piracicaba. O cargo passou a ser remunerado, assumindo uma nova diretoria. Maestro Ernest Mahle tem uma didática jesuítica, quer para música, para filosofia, da qual os alemães são mestres incontestes, ou ainda em um prosaico ensaio de engenharia mecânica. Em sua casa, junto a um engenhoso invento criado por ele, uma roda de água conduz um teleférico em miniatura cortando os ares debaixo de uma frondosa mangueira. Ele explica que Mahle em alemão é derivado de moinho de água, atividade exercida pelos seus ancestrais na Alemanha: “Os primeiros membros da família Mahle que se tem conhecimento, há 400 anos, era moleiros, não só moía o trigo, como também construía o próprio engenho movido a água. Por isso a família tem em seu brasão a roda d água”. Ernst afirma ser o primeiro artista de uma família com gerações compostas por engenheiros e professores. Ernest Hans Helmut Mahle é o nome completo do maestro brasileiro nascido no dia 3 de janeiro de 1929, em Stuttgart, Alemanha, filho de Else Mahle e Ernst Mahle. Seu pai é um dos responsáveis por uma das maiores evoluções havidas nas indústrias automobilísticas do mundo. De simples operário na Mercedes-Benz em Stuttgart passou a ser protagonista da história automotiva mundial, conviveu com figuras históricas como Henry Ford, Ferdinand Porsche, Robert Bosch.
A família Mahle tem fortes raízes em Stuttgart?
Meu avô paterno trabalhou como engenheiro chefe de uma fábrica de máquinas faleceu no fim da primeira guerra, sua fortuna tinha sido aplicada em papéis do governo e infelizmente perdeu-se toda nessa aplicação, deixando a minha avó com nove filhos para criar. Meu pai tinha sido tenente durante a Primeira Guerra Mundial, ele e meu tio Hermann como filhos mais velhos imediatamente tiveram que procurar um emprego, foi quando passou a trabalhar na Mercedes-Benz em Stuttgart. Gottlieb Daimler foi o fundador da fábrica Mercedes Benz, construiu um pequeno motor e adaptou em uma carruagem, cortou os varais onde eram atrelados os cavalos, era um veículo muito primitivo. Meu pai conheceu os principais inventores que trabalharam no desenvolvimento do automóvel. Quando menino ele viu Gottlieb Daimler correr com os seus carros em Stuttgart. Nos fins do século XIX a eletricidade era uma coisa nova, Robert Bosch viu que Daimler para dar partida nos veículos aquecia um arame e rapidamente tinha que colocar em uma câmara de combustão situada no motor, onde havia a mistura de gasolina com o ar produzindo um gás que aquecido dava origem a primeira explosão, mantido o calor o arame permanecia incandescente. Robert Bosch ao encontrar-se com Daimler disse-lhe que havia uma maneira mais fácil e rápida de proporcionar a explosão, uma faísca elétrica poderia provocá-la. Assim foi criado o primeiro modelo de ignição.
Quando o senhor nasceu seu pai trabalhava na indústria automobilística?
Meu pai trabalhava na Mercedes Benz, era um dos dias mais frios de janeiro, meu pai tinha um carro Daimler, como a minha mãe estava para dar a luz ele acelerava o carro sobre o gelo, conforme minha mãe pressentia o meu nascimento dizia para ele aumentar ou diminuir a velocidade em função do risco que a estrada oferecia. Eu já tinha uma irmã quatro anos mais velha, fui o segundo dos quatro filhos do casal filhos: Ilse, Ernst, Eberhard, Christoph .
Percebe-se que o senhor além de profundos conhecimentos musicais gosta muito de mecânica!
Estou ligado a essa explosão tecnológica dos últimos 100 anos! Ligado de duas maneiras, uma delas é a parte mecânica que está no sangue, consigo lidar com todo tipo de máquina, por outro lado vejo os aspectos negativos dessa evolução tecnológica, filosoficamente significa a humanidade enfiada nesse materialismo, podendo ser comparada ao ser humano de três mil anos a trás, no tempo dos faraós, quando agiam como formigas, o faraó era o único realmente inteligente, que planejava. Há mil anos começou a haver modificações. Um exemplo foi quando os espanhóis conquistaram a América perceberam que se matassem o chefe dos incas ou dos maias parava a guerra, os demais eram como formigas, não funcionavam mais sem o líder. Para os espanhóis era indiferente se o chefe morresse, outro assumia o posto, todos eles eram personalidades. Sócrates foi uma personalidade interessante, condenado por estar seduzindo os jovens com a idéia de não acreditar mais em Deus. Sócrates dizia “-Se vocês querem saber como agir, ponham para funcionar o raciocínio, vocês são capazes de determinar como a vida deve ser não precisam correr para Delphos para consultar o oráculo”. Era a moda na Grécia, antes de fazer qualquer coisa o grego consultava o oráculo, onde os conselhos eram dados possibilitando a dupla interpretação. Confúcio já dizia a 3.500 anos, que há três caminhos que podem ser tomados, o primeiro é pela imitação, é o mais fácil, uma criança imita os pais, o segundo caminho é pela experiência própria, é o mais doloroso, o terceiro é pelo raciocínio, é o mais nobre. Se as máquinas dominam as pessoas é o inferno!
O tio do senhor fez parte da Mahle?
Meu tio também teve quatro filhos, eles eram donos da fábrica Mahle de pistão, tinham a fundição sobre pressão do magnésio que é mais leve do que o alumínio, mas ele tem a propriedade de explodir quando aquecido, tinha que ser derretido em uma caldeira fechada, sob pressão com nitrogênio, essa é também uma invenção do meu pai, o pistão do motor diesel se for de alumínio fundido não tem tanta durabilidade como o pistão de alumínio forjado sob pressão, até hoje o pistão do motor diesel é de alumio forjado. Meu pai percebeu que se o pistão e o cilindro fossem de alumínio a dilatação dos materiais quando aquecidos, seria a mesma, só que o desgaste do cilindro por onde corre o pistão era muito grande, foi quando ele resolveu cromar, só que o cromo era 100% liso enquanto o alumínio tinha poros onde o óleo poderia permanecer, tinha que ser criada uma cromação que fosse tão porosa como o alumínio. Ferdinand Porsche foi o primeiro a utilizar essa invenção do meu pai.
Alguma vez o senhor viu Ferdinand Porsche?
Sim, eu o conhecia, era austríaco, fez o automóvel Volkswagen a pedido de Hitler, morava perto de Salzburg, acompanhei o meu pai até lá por diversas vezes. Ele tinha um carro totalmente feito de alumio, inclusive o motor, esse veículo com 1 litro de gasolina conseguiu chegar de Salzburg a Monique. Hoje em dia o recorde são 1.000 quilômetros com um litro de óleo diesel.
Qual era a formação escolar do seu pai Ernst Mahle?
Quando meu pai percebeu que seu salário não iria crescer muito, decidiu estudar a noite, freqüentou a Escola Politécnica de Stuttgart, formando-se como engenheiro.
Até que ano o senhor permaneceu na Europa?
Permaneci até 1951. Quando era criança, morava perto da fabrica Mercedes Benz em Stuttgart, a partir do momento que meu pai passou a ter um salário melhor ele adquiriu uma casa em um bairro mais nobre, tínhamos um vizinho que era eletricista, tinha muitas bobinas de fio elétrico, eu era ainda menino, era louco por rolo compressor a vapor, uma invenção do meu avô, ainda menino eu tive a oportunidade de ver os barcos a vapor construídos pelo meu avô que navegavam no Lago de Konstaz, ele foi engenheiro chefe de uma fabrica de maquinas a vapor, construía para as fabricas maquinas a vapor, com uma única unidade dessas maquinas movimentava muitas outras de teares havia uma porção de eixos e engrenagens fixadas no teto, meu pai foi um dos primeiros fabricantes responsáveis pela colocação de motores elétricos nesses teares com fios correndo pelo chão. A meu pedido o nosso vizinho fez um rolo compressor para que eu brincasse de tal forma que eu sentava e dirigia esse brinquedo idêntico aos rolos compressores da época.
Quando foi o seu primeiro contato com um instrumento musical?
Havia uma escola particular próximo a nossa residência, a “Schicker Schule”, fui matriculado nela, e logo o professor mandou comprar flauta doce, antigamente eram todas de madeira, hoje são de plástico. Foi o primeiro instrumento que aprendi a tocar. Permaneci nessa escola por 4 anos, no quarto ano foi feita uma competição de quem lia melhor a pauta musical, e fui o vencedor, o professor percebeu que eu tinha muito talento para a musica. Nessa época a empresa do meu pai empregava 3.000 pessoas. Dois anos após começou a guerra.
O senhor conheceu Hitler?
Quando ele esteve em Stuttgart o vi de longe passando com seu carro Mercedes. Ele fez um discurso no estádio da cidade, cinco minutos apõe ele iniciar sua explanação um funcionário da Mahle cortou com um machado o fio de transmissão do microfone, Hitler teve que falar para o estádio sem alto falantes. No dia seguinte a Gestapo esteve na empresa. Isso foi em 1938. Lembro-me de ouvi-lo pelo rádio, ele berrava e mexia com todos que o escutavam. Em 1943 as cidades alemãs começaram a ser bombardeadas, colocamos nossos principais pertences em um caminhão e fomos para a Áustria onde tínhamos um chalé, próximo ao Lago de Konstaz. Após a guerra a Áustria foi dividida em quatro partes, cada uma das quatro potências passou a administrar uma região, os franceses dominaram a localidade onde estávamos. O coronel francês responsável pela ocupação sabia que o meu pai era um importante industrial, a Mahle sempre tratou muito bem seus os operários, ela tinha uma filial na França onde fabricava pistões. É interessante dizer que os franceses todo mês traziam músicos do conservatório de Paris, eram os melhores da Europa, vinham pianistas, violinistas, flautistas, cantores, violoncelistas, pela primeira vez na vida vi o que era música, o que era tocar bem um instrumento! Fiquei louco para ser músico! Comprei os estudos de Chopin, Beethoven e comecei a tocar por minha própria conta. Eu tinha 16 anos, tocava de 7 a 8 horas de piano por dia, após um ano surgiram dores nas mãos, nos pulsos, o médico deu o diagnóstico de uma tendinite irrecuperável, eu deveria tirar da minha cabeça a idéia de tocar piano! Comprei uma flauta transversal, um saxofone, uma clarineta e estudava tudo isso sem professor. Para tirar o primeiro som da clarineta levei três horas, na loja venderam-me a palheta mais dura que existia! Ainda guardo comigo a primeira peça que escrevi ao piano em 1945. (Mahle senta-se ao piano e executa um trecho da obra).
O senhor aprofundou seus estudos de música onde?
Fui para Stuttgart após a guerra, lá havia a Escola Superior de Música, que havia sido quase completamente destruída. De três andares a escada ainda funcionava e havia sobrado umas cinco ou seis salas de aula, a diretoria funcionava em uma casa, alugada. Tive que prestar um exame para ingressar na escola, foi me dada uma partitura que eu deveria tocar ao piano e cantar. Eu tinha que decorar a partitura, olhar as mãos e tocar. Recebi uma carta dizendo que não podiam me aceitar como aluno. Isso tinha ocorrido com Giuseppe Verdi que queria estudar no Conservatório de Milão e foi reprovado! Fui conversar com o diretor, ele deu-me o tema “A Flauta Mágica” de Mozart para improvisar uma fuga. Após a minha apresentação ele disse-me: “-Você pode começar! Pode escolher o seu professor de composição!”.
Quando o senhor veio para o Brasil?
Meu pai viajava visitando os fabricantes de automóveis e indústrias que reformavam motores velhos, hoje essas empresas não existem mais, fica mais barato colocar um motor novo. Ele tinha três amigos em Berlin, que eram judeus, donos da maior retifica de motores da Alemanha. Quando Hitler chegou ao poder e começou a fazer propaganda contra os judeus esses três amigos do meu pai ficaram muito céticos quanto ao futuro. Por acaso viram no cinema uma reportagem sobre o Brasil, onde apareceram cenas de São Paulo, imagens de palmeiras tropicais. Pensaram: “-Isso parece que tem futuro!”. Ludwig Gleich que era engenheiro e Adolf Buck com formação na área financeira liquidaram seus negócios na Europa, tomaram um navio e vieram ao Brasil onde fundaram a maior retifica da América Latina a Motorit no bairro Cambuci. Em 1951 cheguei ao Brasil vindo por um navio cargueiro holandês, trouxemos nossa bagagem, o navio fez a primeira escala no Rio de Janeiro, fiquei muito impressionado com a paisagem. Descemos em Santos e subimos a serra com o meu pai dirigindo um automóvel Studebaker, cujo motor ferveu. Na Rua General Jardim, próximo a Praça da República havia uma pensão onde permanecemos hospedados os primeiros meses, até acharmos uma casa para morarmos. Todos os dias eu comprava o “Estadão”, que o meu pai e a minha mãe liam. Como eu tinha estudado latim no ginásio tive mais facilidade em aprender a língua portuguesa, no inicio foi mais difícil entender o que as pessoas falavam, meu pai arrumou uma professora de português, nascida na Alemanha. Ela ensinava principalmente a minha mãe que tinha mais dificuldades com a língua. Meu pai e seus amigos estiveram com o presidente do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, onde foi exposta a vantagem de se produzir os pistões de alumínio no Brasil, fator que poderia atrair os fabricantes de veículos automotores para o país. Era sete sócios, sendo seis judeus, motivo que deu a origem a piada feita pela esposa de um deles: “- Em vez de Metal Leve deveria ser Metal Levy!”. Logo os fabricantes de automóveis passaram a fabricar motores feitos no Brasil. Atualmente a Metal Leve pertence a uma fundação.
O senhor no Brasil continuou a nutrir sua vocação pela música?
Durante o dia ajudava ao meu pai. Como eu gostava de música a noite ia a concertos, no Teatro Municipal, no Teatro Cultura Artística. Conheci o professor de música Hans Joachim Koellreuter, formado em composição, regencia e flauta, tinha permanecido algum tempo no Rio de Janeiro após vir da Alemanha no período da guerra, a sua esposa era judia. É um professor importante, teve como alunos um grande número de importantes músicos e maestros brasileiros. Após assisti-los em alguns concertos procureio-o e disse-lhe que gostava muito de musica e gostaria de aprender alguma coisa a mais. Eu tinha uma pasta com as composições para piano, algumas para flauta, que havia feito após conhecer os alunos do conservatório de Paris. Ele disse-me que um dos mais compositores famosos da atualidade deveria chegar na próxima semana. Esse compositor, de nome Ernest, pegou as minhas partituras e em meia hora tocou tudo. Disse-me: “-Você tem talento, deve estudar musica!”. Comecei a estudar com Koellreuter, em 1939 junto com outro alemão ele havia fundado no Rio de Janeiro uma escola de artes chamada Pró-Arte, era de artes em geral, artes plasticas, pinturas, Koellreuter criou a parte musical, que chamou de Seminários Livres de Música Pró Arte. Durante a segunda guerra funcionou no Rio de Janeiro, em 1951 surgiu a idéia de fazer uma filial em São Paulo.
Foi lá que o senhor conheceu a sua esposa e passou a residir em Piracicaba?
Hoje parece ser uma grande coincidência eu ter casado com alguém que nasceu em Piracicaba, a 10.000 quilômetros de distância de Stuttgart, foi aluna nessa escola onde nos conhecemos. Creio que isso já estava determinado e mostra que para Deus nada é impossível!

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