PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 18 de Setembro de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://blognassif.blogspot.com/
                    ENTREVISTADA: CLOTILDES FERNANDES PETERS
A constante aquisição de novos conhecimentos é uma característica do Homo sapiens, motivado pela necessidade, curiosidade ou simples acaso. O processo de evolução cientifico é exponencial, a velocidade de novas conquistas é cada dia maior. Absorver novos conhecimentos, acompanhar a enorme carga de informações sem atropelar principios básicos do individuo, tem sido objeto de grandes estudos. Uma das maiores beneficiarias dessa corrida tecnologica é a área de saúde, e a odontologia tem um histórico que impressiona a qualquer um que analise sua evolução. As novas gerações frequentam o consultorio dentário com naturalidade, algo impossível de imaginar até algumas décadas, quando ir ao dentista era no conceito do paciente quase a ida a um ritual da inquisição. Novos materiais, novas técnicas, o dominio da situação com muita psicologia aplicada por parte do profissional, fizeram mudanças radicais em curto espaço de tempo. É grande o número de pacientes que fazem o tratamento preventivo, atualmente o objetivo maior é tratar e não extrair um dente, sabe-se que há uma estreita relação entre a saúde bucal e o estado de saúde do individuo. Dra. Clotildes Fernandes Peters, é um dos nomes que protagonizaram enormes mudanças na área odontológica em Piracicaba. Uma trajetória brilhante, superou as dificuldades ocorridas na família, advindas da mudança de uma vida abastada no sítio para uma luta enorme pela sobrevivência na cidade, com muita garra e determinação formou-se em odontologia, onde transformou os conhecimentos científicos adquiridos em beneficios para os seus pacientes e pacientes de outros profissionais orientados por ela. A sua paixão pela profissão é tão intensa que ela emociona-se ainda ao discorrer sobre o seu trabalho. Dedicou-se a vida acadêmica, aposentando-se na Faculdade de Odontologia de Piaracicaba, FOP, que é integrante da Universidade de Campinas, Unicamp. É doutora em ciências com enfase em odontopediatria, cadeira da qual foi professora titular. A Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas – Regional de Piracicaba, indicou a Dra. Clotildes para receber o título de Cirurgiã Dentista de 2010.
A senhora passou sua infância em Piracicaba?
Sou natural de São Pedro, os meus pais José Fernandes e Thereza Carone tinham uma propriedade rural no municipio, era um lugar lindo com muita fartura, lembro-me das brincadeiras de infância, tinha contato com animais, subia em árvores, uma vida típica de quem morava em zona rural, juntamente com meus irmãos Jorge e Natalia. Ingressei na Escola Mista do Bairro do Limoeiro, onde tive como professora Dona Irene Valério. Meus irmãos e eu íamos todos juntos para a escola, o caminho era feito a pé. Lembro-me que a escola era muito longe, passávamos por uma fazenda que tinha muito gado, existia uma espécie de corredor feito com arame farpado, que era por onde caminhavamos. Faziamos esse caminho com sol ou chuva, um trajeto que hoje vemos quanto perigo oferecia nos dias chuvosos, quando a intensidade da chuva aumentava, de forma inocente, abrigávamos as vezes sob a copa de árvores.
Quantos anos a senhora tinha quando a sua família trocou o sítio pela cidade?
Tinha 10 anos quando mudamos para Piracicaba, vindo residir na Rua Saldanha Marinho, proximo á Rua do Rosário, era rua de terra, a casa existe até hoje. Meu pai foi trabalhar com caminhão e minha mãe passou a fazer bordados, ela bordava ponto cruz. Concluí o estudo primário no Grupo Moraes Barros, indo fazer o ginásio na Escola Industrial, no período da manhã eram as aulas normais do curso ginasial, e a tarde eram de trabalhos manuais, aprendi a bordar, a cozinhar, bordei cada coisa! Foi uma escola que sempre me estimulou, eu gostava de jogar tenis de mesa, adorava jogar basquete.Sempre gostei de atividades manuais. O curso científico fiz no Instituto Piracicabano, tive aula de química com o célebre Prof. Demosthenes Santos Correa, francês com Josaphat de Araújo Lopes. O cursinho para prestar vestibular na faculdade de odontologia eu fiz no próprio Instituto Piracicabano, havia alunos da faculdade de odontologia que davam aulas á noite.
Como era o seu lazer?
Na época os pais não ofereciam tanta liberdade como existe hoje. Íamos aos cinemas da cidade nas sessões de matinê nos cines Broadway, São José, eu ia muito ao Politeama. Ao carnaval fui após ter ingressado na faculdade.
A mãe da senhora teve um estabelecimento comercial nessa época?
Para dar suporte financeiro á família ela montou um salão de cabeleireiro na Rua Alfredo Guedes, eu passei a ajudar nas horas em que não estava estudando. Fui cabeleireira, no tempo em que o pessoal gostava daqueles penteados “armados”, tempo em que se usava o laquê, a cerveja no cabelo, tinha gente que fazia questão de passar cerveja no cabelo, algumas traziam de casa, era utilizada diluída em água e aplicada na hora de enrolar o cabelo, antes de secar no secador.
O que a levou a fazer a opção para a odontologia?
No salão, quando eu fazia um penteado, sentia que estava fazendo algo interessante, estava dedicando-me ás pessoas, a torná-las mais bonitas. Eu tinha como vocação alguma atividade ligada a saúde, as opções eram a enfermagem, a odontologia ou a medicina. Cheguei a visitar a escola de enfermagem em Campinas, e senti que estaria um pouco limitada em meu interesse por estudos mais abrangentes. O curso de medicina tinha alguns aspectos que me eram desfavoráveis. Odontologia por tudo que se apresentava era a minha melhor opção.
Na época a FOP funcionava em que local?
Era no prédio da Rua D.Pedro II, 627, sou da quarta turma formada pela FOP em 1963, na época não havia aqui especialização, nem mestrado.
Ainda estudante de odontologia a senhora já trabalhava na faculdade?
Trabalhei na disciplina de patologia, eu tinha jeitinho para desenho, examinava na microspia eletrônica as lâminas e desenhava os objetos de pesquisas, participei da revista Biologia Oral.
Após concluir o curso qual foi a próxima etapa da senhora?
Inicialmente trabalhei como voluntária, depois como assistente, permaneci algum tempo na patologia e depois fui para a odontopediatria, que era a área que eu queria, o titular da cadeira era o Prof. Dr. Moyses Friedman. No final de 1964 comecei a dar aulas, lecionando na disciplina de odontopediatria.
A odontologia nessa época era muito diferente da que existe atualmente?
Entrei em uma época em que deu-se a formação de novos departamentos. A odontologia existente até então era muito extracionista, o departamento de cirurgia era muito movimentado, e o próprio povo ja tinha a opinião formada de que era necessário extrair os dentes quando surgisse algum problema. A área em que comecei a trabalhar visava a prevenção da saude bucal, com o passar dos anos queriamos reabilitar a dentição e ensinar quais eram os cuidados necessários á prevenção.
Houve uma mudança de cultura com relação a saúde bucal?
A odontologia hoje é completamente diferente daquela existente quando comecei, quer seja pela forma como era vista pela população, ou pela tecnologia que sofreu uma imensa evolução. A prevenção contra a carie iniciou com o fluor, vieram os selantes, que ao nascer os dentes, após uma limpeza dos sulcos, prepara-se aquele esmalte para receber o selante. O selante é uma substância bem transparente, fininha, que fica dentro do sulco e impede a agressão da bactéria. É aplicado na criança a cada seis meses, ou um ano, período em que se marca o retorno dela em função das épocas em que o dente irá nascer, para protege-lo.
Houve uma época em que no imaginário de uma parcela da população, ir ao dentista significava quase submeter-se a uma sessão de tortura?
É verdade. Talvez o fato da pessoa ir ao dentista quando ela já estava com dor, já dirigia-se ao dentista com ansiedade, alguns mesmo sem dor ainda tem um pouco de ansiedade. Eu tinha crianças que queriam vir até o dentista.
Além das aulas que a senhora lecionava, mantinha também o seu consultório?
Comecei a lecionar em tempo parcial, por seis horas permanecia na faculdade e o resto do tempo ia para o consultório, após uns cinco anos passei a dedicação exclusiva á orientação e pesquisa, e ao ensino. Ao aposentar-me pela FOP, em 1992 passei a trabalhar em meu consultório, onde permaneci por mais dezoito anos. Tive que me preparar emocionalmente por uns dois anos, para deixar de trabalhar, estava muito ligada à odontologia. Eu amava a faculdade, sofri para deixá-la, depois sofri para sair do meu consultório. (Nesse momento Clotildes fica muito emocionada).

Em sua formação profissional a senhora participou de muitos cursos e congressos?
Até chegar a ser professor titular tem que ser composto um currículo de realizações é tarefa árdua, a seqüência é doutorado, livre docência, adjunto e titular, tudo feito através de provas públicas junto a comissão examinadora. Tem que ser feito um trabalho de pesquisa experimental, fazer o memorial, ministrar aulas. Atingi o meu objetivo, que era de ser professora titular de odontopediatria.
Dos seus filhos, alguém seguiu a odontologia como profissão?
Não, apenas o meu genro. Minha família sempre acompanhou a minha agenda bastante carregada, eu ia para congressos, dei cursos em outras faculdades, cheguei a dar cursos até no Mato Grosso.
Quando a senhora conheceu o seu marido?
Com uns dezessete anos trabalhei como balconista na Padaria Central que pertencia a meus pais, e na época o rapaz que veio a ser meu marido, Ricardo Peters Filho, morava na mesma rua, a Boa Morte, em frente ao Colégio Assunção. Eu estudava no Piracicabano, nós ficamos flertando por muitos anos, até que ele me pediu em namoro. Casamos, tivemos três filhos, Priscila, Sofia e Ricardo.
A senhora tem fama de tirar o medo do paciente ir ao dentista, não só de crianças, mas também de adultos. Qual é o segredo?
Sou muito tranqüila, basta conversar com o paciente, transmitir confiança, sempre o deixei bem à vontade. Um pouco antes de encerrar as minhas atividades no consultório tive um paciente com dezoito anos, meu professor de dança, que tinha verdadeiro pavor de ir ao dentista, aos poucos ele foi percebendo que o seu temor não tinha sentido de existir. Hoje ele diz que não se sente mais temeroso em ir ao dentista.
Em Piracicaba a senhora é a pioneira em odontopediatria?
Na cidade com o titulo de doutor fui a primeira odontopediatra. O professor Renê Guerrini, sobrinho de Leandro Guerrini, fotografou muitos casos que atendi na faculdade. No inicio os odontopediatras eram o professores Antonio Carlos Usberti, José (Tico) Rensi, o Renê e eu. Tinhamos muitos alunos, a contratação de mais professores era dificil, orientavamos os mestrados, doutorados, alunos do CNPq, Capes, FAPESP. Quando começamos com o curso de pós-graduação a Cecilia Gatti Guirado após concluir o curso foi contratada como asistente. Hoje a Regina Maria Pupin Rontani é titular da cadeira, tenho o orgulho dela ter sida iniciada comigo, eu a orientava em pesquisas.
Como foi ser pioneira no tratamento de crianças, em uma época em que adultos se apavoravam com tratamento dentário?
Existem crianças dificeis de serem tratadas, as vezes a criança ainda é um bebê com menos de um ano e já tem cárie rampante ou cárie de mamadeira, a prevenção deve ser feita com limpeza após as principais mamadas, tem mães que são excelentes, cuidam muito bem da saúde bucal do bebê. A criança com cárie não mama, não se alimenta, porque aquilo dói muito.
Esse tipo de informação chega a todas as mães de recém nascidos?
Eu não estou nessa área de saúde pública, mas acredito que há gente trabalhando para que essas informações sejam transmitidas á população. A divulgação dos cuidados necessários para a prevenção é feita junto a escolas, entidades assistenciais. Equipes de alunos de odontologia, acompanhados por seus professores, vão até as escolas, onde orientam as crianças, como proceder na escovação dentária. São ações que passaram a existir com excelentes resultados, o que existia anteriormente era a extração do dente assim que o paciente sentisse dor, sendo que é só tirar a cárie e colocar o cimento.
O tratamento de bebês era feito como?
No consultório a mãe sentava-se na cadeira do paciente com a criança no seu colo, após a preparação necessária, o tratamento era feito com a maior rapidez possível, sempre com uma assistente muito bem qualificada, eu trabalhava em pé. As condições clínicas do pequeno paciente eram avaliadas previamente pelo seu pediatra.
Como é feito o tratamento á pacientes especiais?
No caso do paciente agressivo o atendimento é feito em hospital, com a intervenção sendo assistida por médicos, não há outra forma de serem tratados.
A mãe deve preocupar-se com a saúde bucal da criança a partir de quando?
No período da gestação a futura mamãe tem que ter uma boa orientação médica, se há necessidade de algum tipo de suplementação alimentar. Do odontopediatra ela tem que ter informações de como irá atuar quando o nenê nascer. A partir do terceiro mês de nascimento ela pode levar a criança ao odontopediatra, há crianças que já no terceiro mês apresentam algum sinal de dentição. A higiene bucal é fundamental, todo excesso do leite deve ser retirado do dentinho da criança, principalmente à noite, período em que a criança dorme mais, é quando o ph da saliva é mais baixo e pode atacar o esmalte. Após a erupção dos dentes a mãe pode aplicar a pasta dental, apropriada para recém nascidos, isenta de flúor, a pasta com flúor deve ser usada com a criança já treinada a não engolir a pasta dental, isso ocorre geralmente a partir de cinco anos.
Os cuidados com a saúde bucal do recém nascido estão restrito ás famílias com maior poder aquisitivo?
Essas orientações de higiene ela poderá receber de um profissional que esteja em um posto de saúde, e são perfeitamente viáveis ás mães. Cheguei a fazer palestras para gestantes orientando-as nesse sentido. Quando a criança já tem a dentição completa ao ser levada para fazer as revisões, é aplicado um evidenciador de placas de bactérias, para saber se a criança está com seus dentes bem escovados ou não. Há mães que realizam uma boa escovação, outras não. Isso pode suceder-se por anos, você evidencia as placas e torna a encontrá-las, não é um fio de abacaxi ou de carne, visíveis a primeira vista.
O dentista experiente consegue ter informações sobre os hábitos de higiene bucal do paciente?
É perfeitamente possível obter-se várias informações a respeito. No consultório sempre busquei a prevenção, salientando a importância da escovação. Se o paciente ao retornar após um ano voltasse a apresentar placas de bactérias tinha que aprender de novo a escovar os dentes. Eu fazia isso até com paciente adulto, pois havia adultos medrosos que freqüentavam o consultório de odontopediatra, ou ainda aqueles que atendidos ainda crianças, ao crescerem queriam continuar a serem tratados lá mesmo.

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