PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 15 de abril de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://www.teleresponde.com.br/
http://blognassif.blogspot.com/
ENTREVISTADO: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA DE CAMPOS (FREI TITO)

No princípio era a idéia: Missão.


No principio era o sonho:


apenas viver entre os pobres,


como pobre e para os pobres.


Foi assim que a idéia se fez sonho


e o sonho se fez idéia:


“Vida e Regra de Francisco”.


Não do Francisco de Assis


mas do Francisco do Glória,


que pela fé e doação,


idéia e sonho se fizeram ação.


Frei José Orlando Longarez, O.F.M. Cap.
Francisco de Assis Pereira de Campos ainda hoje é chamado de Frei Tito, nome adotado no período da sua vida dedicada exclusivamente á sua missão religiosa. Frade quer dizer irmão significa viver a fraternidade O frade capuchinho pode ser sacerdote ou irmão leigo, vivendo em fraternidade e servindo a Igreja, preferencialmente em tarefas e lugares difíceis. Realiza os serviços simples, humildes, estando entre os pobres e marginalizados. O frade capuchinho procura trabalhar pelo bem do povo com preparação e competência, sem ambições pessoais. Piracicaba tem grandes exemplos de frades capuchinhos como referência. Um nome inesquecível é o de Frei Francisco Erasmo Sigrist que exerceu o ministério sacerdotal durante quase 15 anos, somente em Piracicaba. Em janeiro de 1985 foi para a Fraternidade Nossa Senhora da Glória, no Jardim Glória, uma favela de Piracicaba, onde viveu e trabalhou até a morte, buscando realizar intensa e radicalmente a proposta fundamental do Evangelho. Frei Tito partilhou com Frei Sigrist o mesmo teto do barraco em que moravam, na favela, hoje tombado como patrimônio histórico. Frei Tito realizou a experiência de vida onde só a fé intensa desenvolve a coragem de vencer os inúmeros obstáculos encontrados. Vivenciou o mundo desconhecido pela maioria da população, o cotidiano dos marginalizados, onde o significado da vida tem referencias e valores próprios. Francisco de Assis Pereira de Campos tem formação em filosofia e teologia, especialização em filosofia política e filosofia da arte. Mestrado em educação. Hoje é Assessor Executivo do Gabinete do Prefeito de Sumaré, o piracicabano José Antonio Bacchin., foi Secretário de Obras, Diretor de Educação, Diretor de Cidadania, Gerente da Cidade, Chefe de Gabinete, na cidade de Sumaré.
Francisco de Assis Pereira de Campos, Frei Tito como ainda o chamam é piracicabano?
Nasci em 14 de junho de 1954 na Nova Suíça, bairro rural distante poucos quilômetros do centro de Piracicaba. Sou filho de Benedito Pereira de Campos conhecido como Dito Gica, meu avô paterno tinha o apelido de Seu Gica. Minha mãe é Barbara do Amaral Campos conhecida como Dona Barbica. Sempre foram agricultores, eram proprietários de um sítio com aproximadamente dez alqueires. Ao longo de muitos anos tivemos gado leiteiro, naquele tempo entregávamos o leite direto ao consumidor, em litros de vidro que eram acondicionados em um engradadinho de ferro, a entrega era feita de casa em casa. Era o tempo em que o padeiro também entregava o pão á domicilio. Éramos nove irmãos, Antonio, Maria José, Maria Alice, João Pedro, Maria de Lourdes, Francisco, José Deodato, Reinaldo, Vera. Na roça começa a se trabalhar logo que se aprende a andar. Era uma agricultura familiar, as crianças ainda muito novas já iam para roça. Na época ás três horas da manhã já se levantava para tirar leite, ás seis horas da manhã o leite deveria estar sendo entregue na rua.
O senhor sabe ordenhar?
Tirei muito leite. Usava-se aquele tradicional banquinho, com um pezinho e amarrado á cintura, para poder fazer o trabalho de forma mais rápida.
Era necessário imobilizar a vaca?
Amarrava-se a cabeça para evitar chifradas, imobilizava as patas traseiras, para não tomar coices do animal. Era um serviço que oferecia riscos para uma criança. Cheguei a levar uma chifrada em uma das mãos, que provocou um ferimento sem nenhuma seqüela, mas de certa gravidade. Na época não havia mecanização, toda a lavoura era feita com arado, tracionado por burros. Uma das coisas que mais gostava de fazer era arar a terra, gradear a terra. Gradear a terra era quase uma diversão, nós subíamos em cima para ela ficar mais pesada. Era muito gostoso passar ferramenta em roça de milho, de arroz. Trabalhávamos com uma dupla ou “pareia” de animais até a hora do almoço e em função do calor após o almoço utilizávamos outra “pareia”.
Era comum dar nome aos animais?
Sem dúvida! Tínhamos uma mula chamada Chalana, era muito estimada. É interessante observar que meu pai gostava da música Chalana, e em função disso várias gerações de mulas receberam esse nome. As vacas também recebiam nomes como Mansinha, Pintada. Chegamos a ter vinte vacas produzindo leite diariamente.
O sítio ficava bem próximo da cidade?
Lembro-me de que vinha a pé assistir a missa na catedral de Piracicaba. A distância deve girar em torno de uns seis quilômetros. O nosso sítio ficava bem em frente ao Seminário Diocesano. A entrada do Seminário e uma faixa de terra que dá acesso ao mesmo foram cedidas pelo meu pai.
Houve uma época em que o leite “in natura” não podia mais ser vendido?
Vivemos esse tempo, no início do Morro do Enxofre a fiscalização pegava os leiteiros, prendia, dava banho de água fria nos leiteiros. Ainda pequeno, eu não entendia muito bem o que estava acontecendo, que por trás disso havia uma industrialização. A obrigatoriedade de colocar o leite nos laticínios e tirar o produtor da venda direta ao consumidor. A fiscalização era rigorosa. Havia produtores que vinham de longe para trazer o leite, com caminhonete carregada de leite, e era comum eles pararem em casa, por ser o sitio que também produzia leite e ficava mais próximo da cidade.
Em nome da pasteurização, da saúde pública, beneficiou-se muito o poder econômico?
Sem dúvida. Hoje o leite tem que passar pelos laticínios por conta de uma série de preocupações com a saúde pública, mas sem duvida nenhuma os beneficiários disso foi o poder econômico.
Havia rádio na sua casa?
O rádio chegou muito tarde á minha casa, deve ter sido na década de 60. Tínhamos um rádio á bateria, com válvula. Ouvíamos muito o Zé Béttio. Meu pai ouvia muito o Alziro Zarur da LBV – Legião da Boa Vontade.
O grupo escolar o senhor cursou onde?
Fiz o Grupo no Bairro Rural Pau Queimado. Lembro-me das nossas professoras, Dona Ruth, Dona Filomena e Dona Dalva. Na época acho que era a Dona Dalva que tinha um carro DKW branco e vermelho. Quando chovia, ás vezes elas não conseguiam chegar até a escola, nós ouvíamos o ronco do carro quando ele estava vindo. Em dia de chuva a molecada torcia para não ouvir o carro, assim não haveria aula.
A energia elétrica demorou á chegar ao bairro?
Chegou bem cedo á nossa região, por conta do prefeito Francisco Salgot Castillon. Ele levou também o telefone. Na minha casa havia um aparelho e na venda do Santo (Santin) Novello havia outro aparelho, o número do nosso telefone era 94. Para fazer uma ligação tinha que solicitar á telefonista que a fizesse. O telefone tocava em casa e tocava no Santin. Eram extensões um do outro. Esse telefone acabou virando um orelhão. E era esse também o objetivo, não era visto como um privilégio pessoal.
Isso tornou a sua família popular na comunidade?
Havia um espírito de solidariedade na alegria e na tristeza. Quando ouvíamos o porco gritando lá no sítio do vizinho nós sabíamos que iria aparecer um pouco de carne para comermos. O vizinho matava o porco e trazia um pedaço de carne. Isso era recíproco. Era interessante essa relação de vizinhança, quase nunca um vizinho chegava á casa do outro de mãos vazias. Sempre trazia limão, laranja, pão caseiro.
Houve um período em que a família veio morar em Piracicaba?
Tivemos um momento de dificuldades, fomos morar na Vila Boyes, próximo a Igreja São Dimas. Meu pai adquiriu de um tio um armazém. Permanecemos por um tempo em Piracicaba, preservamos o local onde morávamos na zona rural. Meu primeiro emprego ficava embaixo da rádio PRD-6, em um laboratório de prótese de propriedade de Washington e Roberto. Faziam dentaduras, pontes. Trabalhei um tempo também como cobrador de ônibus, da Viação Marchiori, fazia a linha Piracicaba-Rio Claro, depois eles passaram a fazer também a linha Piracicaba-Pirassununga, após trabalhar por um determinado tempo nessa linha, voltamos para o sítio novamente. Com 15 para 16 anos de idade fui estudar no Colégio Agrícola de Rio das Pedras. Estudei por três anos lá, sou da primeira turma formada pelo Colégio Agrícola de Rio das Pedras. Quando iniciamos os estudos lá, o alojamento não estava ainda pronto, permanecemos morando em umas casas do CDHU na entrada de Rio das Pedras. O caminhão do colégio nos levava para lá, subíamos em cima da carroceria, era um frio danado.
Como jovem, é natural ter algumas distrações, quais eram as suas?
Eu gostava de jogar futebol, sempre fui goleiro. Jogava também na linha. Em Rio das Pedras, na Rua Prudente de Moraes, havia um cinema, era também um local de distração. As quartas-feiras eu saia do colégio e ia ás reuniões dos vicentinos. Eu era vicentino. Conheci muito Caetano Gramani, uma pessoa que sempre esteve muito presente na minha vida.
Saindo do Colégio Agrícola o senhor foi trabalhar onde?
Surgiu um concurso na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, fiz, fui aprovado e passei a trabalhar na ESALQ no departamento de solo e geologia, o responsável pelo departamento era o Prof. Dr. Guido Ranzani, sogro de João Hermann Neto. Morava no Bairro da Suíça e trabalhava na ESALQ, Pedro Hidalgo era um vizinho de sítio e que trabalhava em uma metalúrgica próxima, ele tinha um fusca novinho, eu ia e voltava com ele. Permaneci trabalhando na ESALQ por dois anos.
O que aconteceu depois?
Eu sempre tive uma vida muito ligada á igreja, em especial aos franciscanos. Meu avô, Seu Gica, foi Terceiro Franciscano, foi sepultado com habito da Ordem Terceira. Hoje eu pertenço á Ordem Terceira. São Francisco queria uma ordem de irmãos, por isso a denominação “frei”. A origem está em “fratello”. Na idade média para pregar o evangelho precisava ser diácono, não era padre, mas pertencia ao clero Ele fundou a ordem dos frades e abriu a possibilidade para que todos possam viver o evangelho na sua espiritualidade. A Ordem Terceira é para todos cristãos que querem viver o espírito franciscano. Naquele momento em que trabalhava na ESALQ eu fazia a coordenação da Pastoral Rural da Diocese de Piracicaba, foi no período em que ocorreram os movimentos como Topada, Gen, TLC. Nós criamos na Igreja dos Frades a Pastoral Rural, o capelão na época era Frei Saul Perón. Lembro-me do Frei Afonso. Frei Marcio era o frei mais jovem. Essa relação com os frades acabou criando um envolvimento, Frei Marcio era responsável pela pastoral vocacional, com isso éramos provocados em determinadas situações a ser padre. Éramos jovens empolgados com a pastoral. Gostava e gosto da Igreja até hoje, na época entendi que deveria tomar uma decisão.
Qual foi a reação da sua família?
A minha família gostou. Lembro-me que estava sentado na soleira da porta, quando disse á minha mãe que estava pensando seriamente em ir para o seminário. Ela disse-me: “-Mas você já está muito velho para isso!”. Na época quem ia ser padre ia para o seminário muito cedo. Fui para o seminário onde tive formação da filosofia antiga e da nova, sobretudo a filosofia da libertação. Tive professores como Hugo Assmann, Frei Beto, Rubem Alves, Leonardo Boff.
Há a possibilidade de ser frade sem ser padre?
Perfeitamente! O frade pode morar em um convento e exercer o trabalho como advogado, médico, veterinário, professor, temos um caso de um frade que exerce a profissão de cobrador de ônibus. Tem que estar ligado a fraternidade. Tem que ser feito os estudos e fazer a profissão de fé.
Quando foi a profissão do senhor?
Meus primeiros votos foi em 1980, aqui no Seminário Seráfico São Fidelis. Fiz meus estudos em Nova Veneza. Em 1982 fui morar na periferia de Sumaré, com Frei João, que hoje é bispo. Eu entendi que o meu papel na igreja era fundamentalmente o de contribuir para a formação da catequista, dar cursos bíblicos aos leigos e, sobretudo estar presente nos movimentos sociais.
O ser humano constrói seus próprios obstáculos?
Sem dúvida. Só que ele não procede assim por acaso. Somos frutos de uma formação. Paulo Freire diz que: “-A nossa cabeça é onde estão os nossos pés”. Somos produtos do meio.
O senhor é conhecido como Frei Tito?
Frei Tito por conta da ordem. E permaneceu. Na favela algumas crianças me chamavam de Título. Vim morar em uma fraternidade nossa no Jardim Glória. Frei Sigrist tinha acabado de voltar da Alemanha onde tinha feito teologia. Ele era uma pessoa muito especial, de grande espiritualidade, grande senso de humor. Alguns estudantes tinham construído um barraco na favela e foram morar lá. Pedi ao Provincial Frei Sermo Dorizotto para vir morar na favela.
Como é morar em uma favela?
É uma experiência muito boa. Foi o período mais interessante da minha vida. Eu já tinha convivido com uma favela, mas não havia morado em um barraco, junto com o povo, vivendo 24 horas por dia na favela. Acabei vindo morar com Frei Sigrist. Nesses anos todos que vivemos na favela tínhamos apenas um pequeno rádio, quando ia lavar roupa eu ficava ouvindo “Toninho da Engenhoca”. Não tinha televisão, não tinha muro, não tinha cerca. Criamos uma relação muito saudável com a população. O barraco não tinha fechadura. Quando chegamos á favela tínhamos problemas de todas as ordens. A primeira coisa que fizemos foi capacitar algumas mulheres de boa vontade no sentido de elas fazerem curativos, procedimentos básicos de saúde. O barraco acabou sendo um pequeno ambulatório.
Próximo existe o Pronto Socorro?
Existe. Mas não é só a questão do atendimento ser bom ou ruim. O sentimento das pessoas das favelas é de quem está á margem da sociedade. Sem auto-estima. Ás vezes o único espaço que encontram é na marginalidade. Eu participei de mutirão rebocando casa. A nossa presença ali era de extrema importância para eles. Aprendi a fazer muitas coisas com eles. Montamos uma fábrica de blocos lá dentro. Compramos um caminhão Mercedes-Bens e eu dirigindo o caminhão ia buscar areia na Codistil. Ganhamos do Colégio Dom Bosco a antiga estrutura, eu e Frei Sigrist em cima de andaimes, vigotas, com a criançada, mulherada, todos juntos derrubamos aquilo tudo. Isso os animava e mudava a vida deles. Foi um trabalho de muita integração, viver a vida deles. Desistimos de ter colchão nas duas camas, tanto na minha como na do Frei Sigrist. Um dia chegando em casa, chovendo, o Sigrist me disse: “- Tito, você me desculpe, mas chegou uma mãe com o filho deitado no chão, no barro, eu disse a ela que só tinha o meu colchão e o seu para dar á ela. Ela aceitou. Não fique bravo, Tito, amanhã eu compro outro colchão”. Eu respondi: “-Vamos ficar sem colchão! Se comprar você vai doar de novo!”. Ficamos por vários anos sem colchão. O barraco está lá, do jeito que deixamos, aberto á visitação.

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