ORIVALDO TRIMER
PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 19 de setembro de 2009
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
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ENTREVISTADO: ORIVALDO TRIMER
Orivaldo Trimer é descendente de russos que imigraram para o Brasil, mantém características físicas típicas, com um metro e oitenta centímetros de altura, conserva o corpo em forma, dono de uma grande força física. Os imigrantes da Letônia, considerados russos eram bons agricultores. A vinda dos primeiros contingentes de Letos para Nova Odessa foi em 24 de junho de 1906, abrangia terras que hoje compõem Nova Odessa e municípios vizinhos. A saga da família Trimer se assemelha a de muitos imigrantes que lutaram contra muitos obstáculos: língua, costumes, clima e a luta infindável pela sobrevivência. Orivaldo é filho de Alfredo Trimer e Paschoa Grivol Trimer. Nascido em Tupi, em 22 de julho de 1939 é casado com a piracicabana Neusa Helena do Amaral Trimer desde 1968, casamento realizado na Matriz da Vila Rezende pelo Monsenhor Jorge.
Seu pai Alfredo Trimer foi proprietário de um estabelecimento em Caiubi?
Meu pai tinha um armazém em Caiubi, Foi lá que ele se tornou um grande amigo de José Nassif. O Seu José transportava açúcar da Usina Furlan e passava diariamente pelo armazém do meu pai. Eu saí de Caiubi com 11 anos de idade e fui para a Fazenda Cachoeira em Artemis. A nossa família toda se mudou para lá, fomos plantar cana de açúcar, a propriedade era do Dr. Freitas. Em 1956 fui campeão de ciclismo em Artemis, com uma bicicleta suíça, marca Nata, acho que foi a única que existiu no Brasil! Nós vínhamos de Artemis até Piracicaba de trem, descíamos na Vila Rezende e apanhávamos o bonde para economizarmos. O preço do trem da Vila Rezende até o centro era mais caro do que o bonde. Essa economia era importante para nós naquela época.
O armazém em Caiubí não prosperou?
No início era um bar, ia indo bem, vendia-se muito bem pão, “frangava” (negociava com os famosos “frangueiros”, comerciantes que percorriam as localidades rurais levando principalmente armarinhos, pães doces, muitas vezes até cortes de tecidos. Uma característica peculiar é que o carrinho de tração animal tinha abaixo do seu piso uma gaiola, onde eram transportados os frangos vivos. As negociações eram feitas por permutas com frangos, ovos, queijos, produtos da roça Seu Alfredo abastecia esses frangueiros). O que definiu o fim do armazém foi quando meu pai decidiu ampliar as instalações e infelizmente o investimento não deu o retorno esperado. Outro fator que pesou muito foi o excesso de confiança que ele tinha na honestidade das pessoas que compravam a crédito. Muitos não corresponderam a essa confiança.
Tem uma passagem pitoresca, que mostra a determinação do seu pai para o trabalho?
Meu pai era muito trabalhador. A lavoura dele era equivalente a lavoura cultivada por uma família com maior número de pessoas. Ela plantava algodão, na época o serviço na terra era feito com a utilização de burros, até ao meio dia ele trabalhava com uma parelha de burros, minha mãe levava o almoço e outra parelha de burros descansada, e quando era tempo de lua cheia ele ia até mais tarde. Meu pai levantava sempre ás quatro horas da madrugada, era ele quem fazia o café e tirava leite. Minha mãe tinha o costume de por uma pitada de sal no leite. Quem bebia dizia: “-Que leite gostoso!”.
Como a família Trimer passou a tomar conta da Chácara Morato?
Meu estava procurando um lugar para morar. Encontrou um conhecido que morou na Fazenda Cachoeira, e que lhe disse: “Estou morando em tal lugar, lá está muito bom, vamos lá você vai ver”. Meu pai veio, encontrou o administrador Antonio Massoca. Ele então disse ao meu pai: “Estou saindo Alfredo, aqui é bom para você que é trabalhador”.
Na época que idade você tinha?
Eu tinha uns 18 anos de idade, mudamos para lá no final da década de 50 e saímos em 1978.
Quem era o proprietário da Chácara Morato?
Era do Dr. Celso Leme, ele era casado com Dona Cenira Leitão, filha do Dr. Francisco Morato.
Qual era a área da Chácara Morato?
Eram 50 alqueires paulistas. (Cada alqueire paulista mede 24.200 metros quadrados). Hoje é cidade! Está ali o Carrefour, o condomínio Terras de Piracicaba.
A Chácara Morato abrangia que região?
Em uma extremidade ficava a uns 100 metros abaixo do Castelinho (Propriedade em forma de castelo, projetada pelo arquiteto Dr. João Chadad, que deu origem ao nome do Bairro Castelinho). Pela antiga Estrada Boiadeira ia até o café da Chácara Nazareth.
Uma das características próprias da Chácara Morato, eram suas frutas, em especial a variedade de tipos de mangas?
Tinha muitas espécies de mangas, não sei dizer quantas, mas chegamos a estimar em trinta espécies diferentes. Tinha pé de manga enorme, que precisava de três a quatro homens para abraçar. Havia uns pinheiros que tinham sido plantados e que naquela época (1970) os registros dos mesmos marcavam 105 anos de existência.
Para chegar á “cidade” qual era o caminho percorrido?
O lugar mais próximo era a Paulista, passávamos pelo pasto, pela invernada, iamos até a Igreja dos Frades. Minhas irmãs e eu íamos assistir a missa bem cedo. Era um trilho, só se passava a pé, Lá em cima havia uma porteira fechada com cadeado, nós passávamos entre os fios de arame da cerca e saíamos no aterro da Estrada de Ferro Paulista, onde hoje existe uma empresa de terraplanagem, próxima a rotatória da Avenida Dr. Paulo de Moraes com Avenida Nove de Julho.
Foram feitos bailes no tempo em que a família Trimer trabalhou na Chácara Morato?
Eram realizados bailes no terreirão, fazíamos o palizado. A Cerâmica tinha uma colônia de trabalhadores cujas casas ficavam onde hoje há uma padaria em frente ao Condomínio Colinas, próximo ao Carrefour.
Quem cuidava do casarão da Chácara Morato?
Era uma funcionária, Dona Nerina. A família do Dr. Celso vinha passar as férias no casarão.
Havia construções remanescentes de uma senzala que existiu no passado?
Nós morávamos na casa que foi habitada pelos escravos. Era uma casa em forma de “Z”, muito comprida mais de cem metros de comprimento, paredes feitas com pedras com a espessura das paredes de quase um metro de largura, os caibros do telhado feitos com coqueiros, telhas feitas nas “coxas” (Telhas fabricadas com barro moldado nas coxas dos escravos). Algumas vezes minhas irmãs iam ver uma novela na televisão do casarão, era preciso que uma pessoa as acompanhasse, quando voltavam, no escuro da noite era muito fácil imaginar vultos ou ruídos assustadores.
Você chegou usar que tipo de condução para entregar algodão que era plantado pela família?
Meu pai, Alfredo, tinha muita experiência no plantio de algodão. Existia uma terra vermelha, em um pedaço da chácara, lá pelos lados da Paulista, o terreno era bem plano. Deu um algodão muito bom, foi à primeira planta que “endireitou a costela nossa”. Foi vendida para o Seu José Nassif, na primeira vez que fiz a entrega, engatei dois burros na carroça e subi para a Paulista, era o trilho da invernada, o administrador da chácara me deu a chave do cadeado e passei pela porteira do Jaraguá. Ali havia uma estrada que chegava até a Rua do Rosário, levei nessa viagem umas 50 arrobas (Cada arroba pesa 15 quilos).
Vocês plantaram cana de açúcar na Chácara Morato, como era carregada essa cana?
O carregamento era manual. A terra sempre foi muito boa, resultando em uma cana bem desenvolvida. Chegamos a colher até 2.000 toneladas de cana que eram entregues no Engenho Central.
Quantos feixes de cana você cortava por dia?
Eu cheguei a cortar e amarrar 411 feixes. Em uma cana boa, a “77-Brasil”, até o meio dia eu tinha 300 feixes amarrados. Depois do meio dia eu ia para 500 feixes. Ninguém nunca conseguiu cortar essa quantidade. O meu podão de cana eu amolava dos dois lados. O administrador Luiz Trevisan dizia que não conhecia alguém que cortasse aquela quantidade. Comia e já ia mastigando trabalhar. Naquele tempo o Engenho Central não aceitava que a cana fosse queimada.
Onde era o local chamado Matão?
Iniciava nas Glebas Califórnia e ia até a Pedreira Equipav.
Você atravessava a estrada em frente á Chácara Morato e já estava no Rio Piracicaba?
Meu pai gostava de pescar. Quando moramos em Artemis não saia do rio. Era bom nadador e mergulhador. Quando o Rio Piracicaba enchia, subia no então trampolim do Clube de Regatas, pulava, e ia até a Barra do Rio Corumbataí nadando, sem bóia, sem nada. O corpo acostumado a trabalhar no pesado desenvolveu uma disposição física impressionante.
Quando a família comprou o primeiro veículo automotor?
Foi uma Kombi. Fomos para Santos, a família toda, oito pessoas, que alegria! Isso foi na década de 62 a 63. Era de segunda mão. O teto era branco, e o resto da pintura na cor café com leite. Deu problema na volta, o relê não funcionou mais, e de Americana á Piracicaba viemos sem luz! Na época o movimento nas estradas era pequeno.
Quando encerrou o período de trabalho na Chácara Morato qual atividade você passou a exercer?
Com meu primo montamos uma pequena empresa de terraplanagem. Fomos para a cidade de Itapeva, aqui havia muita concorrência. Na época o então proprietário da Padaria Jacareí tinha uma fazenda em Itapeva, fomos realizar um serviço para ele, começaram a aparecer serviços bons.
Você tem muita habilidade para o conserto e manutenção de máquinas pesadas?
Ainda aqui na Chácara Morato, trator, caminhão eu mesmo consertava. Em Itapeva eu tinha uma oficina onde eu recondicionava do motor até a parte rodante dos tratores de esteira. Quando descobríamos defeitos de fabricação em uma máquina escrevíamos ao fabricante sobre o assunto. Na máquina Fiat a bomba de embreagem fundia muito pela sua localização. O modelo seguinte já veio com a bomba melhor localizada. Esse é um exemplo, muitos outros aconteceram, inclusive com outros fabricantes de máquinas pesadas. Chegamos a retificar motores em pleno mato fechado. Isso foi uma grande vantagem para a nossa empresa, que ganhava muita agilidade. Tínhamos um veículo que era praticamente uma oficina completa, e sempre mantivemos prontas para o uso reservas de partes e peças mais estratégicas para o funcionamento das máquinas.
No início da cultura de cana na Chácara Morato você transportava a cana de açúcar com qual veículo?
Era um caminhão “toco” á gasolina, F-600 ano 1958.
Os caminheiros ficavam esperando em uma fila, a vez de descarregar a cana na usina. Era comum tomarem um aperitivo antes do almoço?
Existia esse hábito na época. O caminhão F-600, tinha um espaço atrás do banco onde podíamos levar nossos pertences pessoais. Eu costumava levar dois vasilhames. Em um deles tinha o aperitivo para meu consumo. O outro era para aqueles caminhoneiros que vinham “serrar”. No trajeto que fazíamos para ir até o Engenho Central havia um local onde era habito serem feitos os chamados “despachos” com diversas oferendas para as entidades, entre elas aguardente. Eu e meu ajudante abastecíamos com a pinga deixada ali o vasilhame destinado aos colegas que gostavam de filar um aperitivo. Por muitos anos eles se deliciaram com essa cachaça, até que acabei contando á eles a origem do que eles consideravam um produto de sabor excepcional! Na época a fila era enorme, as últimas viagens iam até de madrugada. Cheguei a ficar esperando por oito horas na usina para descarregar a cana de açúcar. Isso no Engenho Central. O caminho que eu fazia seguia pela Rua do Porto, era estrada de terra. Onde foi o Clube Regatas o caminhão não passava, era obrigado a ir por cima, pela Rua do Sabão.
A subida que há na Rua do Porto atrás do Palacete Boyes não existia?
Não havia, era tudo propriedade da Fabrica Boyes. Onde hoje é a Nova Piracicaba era plantação de cana. No bairro Nhô Quim, hoje existe a Avenida Manoel Conceição, foi propriedade do Mário Áreas Witier, conhecido como Mário da Baronesa, por ter sido criado por ela.
Você chegou a transportar cana com o bonde ainda funcionando em Piracicaba?
O caminho para levar a cana para o Engenho Central obrigatoriamente tinha que ser pela Ponte do Mirante, hoje Ponte Irmãos Rebouças. Quando o bonde ia, nós íamos atrás do bonde. Quando ele vinha da Vila Rezende para o centro, na cabeceira da ponte havia um funcionário em cima de um poste, sentado em uma cadeirinha com uma manivela ele apagava o farol de um lado e acendia de outro lado. Tínhamos que esperar, não havia porteira, entravamos pela Avenida Maurice Allain. Descíamos até o local próprio para descarregar e lá o guincho descarregava. O pai da minha esposa, Seu Osvaldo do Amaral, trabalhou muitos anos lá como cosedor de vácuo, que é uma etapa onde passa a garapa para ser processada. Um dos balanceiros era o Seu Joaquim.
No hoje Bairro Jaraguá como era?
A Chácara Nazareth era toda formada por invernada, existia só gado praticamente. Havia muita codorna. O plantio de café era feito só mais para cima, e dava serviço para muita gente, eles apanhavam o café escolhido, selecionado, eu até acredito que era para servir como semente. As mulheres e as crianças quando passavam para fazer a colheita era um número muito grande de pessoas, duzentas a trezentas pessoas. Quando voltavam do trabalho apanhavam do nosso canavial, uma ou duas canas, isso todos os dias, você pode imaginar ao final de um mês quantas toneladas eram apanhadas para consumo deles.
Havia roubo de gado na época?
Existia sim, perdemos um cavalo e uma parelha de mula.
Alguns ciganos eram negociantes de animais?
Houve uma época em que apareceram uns ciganos, com tropa de animal. Meu pai trocou uma égua velha e Seu Clemente que era da Gleba Califórnia, ele tinha um barzinho lá, com jogo de boche, era muito conhecido, também fez uma troca de animal com os ciganos. Os dois foram para a Paulista. Meu pai disse: “Clemente, essa aqui eu comprei do cigano.” O Clemente disse: ”Eu também comprei essa”. Na outra semana deu uma chuva e lavou os animais. Os ciganos passavam algum produto, talvez cinza de fogão nos pontos estratégicos das montarias. Isso porque quando é velho o queixo dos animais fica branco. Eles tinham maquiado os animais! Meu pai e o Clemente deram boas risadas.