CARMELA PEREIRA
PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS JOÃO UMBERTO NASSIF Jornalista e Radialista joaonassif@gmail.com Sábado, 31 de janeiro de 2009

A Tribuna Piracicabanahttp://www.tribunatp.com.br/Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:http://www.tribunatp.com.br/http://www.teleresponde.com.br/ Nos sites: www.teleresponde.com.br No Blog BLOG DO NASSIF (Letras Maiúsculas mesmo, no jargão jornalístico, caixa alta) http://blognassif.blogspot.com/

ENTREVISTADA : CARMELA PEREIRA

Carmela Pereira nasceu em Piracicaba no dia 28 de abril de 1936, filha de Berbelina Maria de Jesus e Aprígio Pereira, que tiveram doze filhos. Nascida no sítio Rio Acima, de propriedade dos seus avós, que ficava no bairro Monte Alegre. Seguindo pela estrada que vai até o Aeroporto de Piracicaba, as terras situadas em frente ao Centro de Tecnologia da Copersucar pertenciam aos seus avós. A avó tinha o mesmo nome da mãe, Berbelina Maria de Jesus e o avô era Bonifácio Jesuíno de Souza. Carmela é uma verdadeira usina de criatividade. De personalidade forte, tem a seu favor a disciplina adquirida ainda na infância e adolescência, com as religiosas do Lar Escola, situado á Rua Boa Morte. Ali ela recebeu uma visão de cultura que sempre norteou sua vida. Desenvolveu seu talento para artes plásticas e literatura. Hoje é uma escritora de sucesso, embora muitos em Piracicaba desconheçam o fato. Algumas de suas obras publicadas: S.O.S. Lambari, 500 Anos De Brasil -305 Anos Sem Zumbi Dos Palmares, A Galinha Carijó, Era Uma Vez, Estrada Sem Fim, Manual da Empregada Doméstica, Felipe, A Gata Malhada, Um Rapaz Chamado Aprígio, O Natal Hoje, O Menino Riacho Itapeva, Nossa Senhora Dos Prazeres, O Manual da Bruxinha Boa ( Coletânea de 8 volumes), Abecedário do Irado Que Joga No Lixo, O Folclore de Piracicaba, Conflito Entre Astros, Engenho Central, Prefeitura, Casa Do Povoador, Evidencias Em Ponto Cruz. Como artista plástica ela revela uma autenticidade preocupada com as coisas de Piracicaba. Carmela encarna a genialidade latente da população. Acometida de uma deficiência visual decorrente da pressão ocular (glaucoma), Carmela como uma guerreira que sempre foi, prossegue em sua luta, realizando primorosos trabalhos de artesanato, pintura e literatura. Sua figura física tem um ar soberano, que pode ter origem nos seus antepassados trazidos á força da África. Carmela Pereira é uma pessoa carismática.

A senhora morou no sítio onde nasceu até que idade?

Quando eu tinha sete anos de idade meu pai faleceu. Houve uma grande confusão com relação á nossa propriedade. Meu pai contava que havia perdido parte das terras em um jogo de carteado denominado 21. Segundo a sua narrativa antes de falecer, a aposta era referente a apenas uma parte da propriedade. Acabamos perdendo tudo.

Como a menina Carmela foi parar no asilo para menores?

Meu pai faleceu, minha mãe contraiu tuberculose e teve que ser tratada em Campinas, sendo que logo que ela voltou para Piracicaba acabou falecendo. O Comendador Morganti foi quem providenciou para que eu na época com sete anos de idade e minha irmã Margarida, com dois anos e pouco, fosse para o Lar Escola Coração de Maria Nossa Mãe, localizado á Rua Boa Morte 1955. Na época chamava-se Asilo de Órfãs Coração de Maria Nossa Mãe. Hoje qualquer criança tem acesso aos veículos de comunicação, nós na época não tínhamos essa facilidade de recebermos informações.

Como era o seu dia vivendo como interna no Lar Escola?

Acordava ás cinco e meia da manhã. Na época existiam 102 meninas internas. Havia um dormitório para as meninas na minha faixa etária, outro para os bebes, e um terceiro onde ficavam as meninas já adolescentes. Mãe Nhana (Mamãe Ana), abria a cortina da clausurinha dela que era composta por uma cama, um criado mudo e uma cadeira. Ficava dentro do grande dormitório. Ela saia já paramentada com seu hábito de freira. Batia por três vezes as palmas da mão. Levantávamos, escovávamos os dentes, arrumávamos a nossa cama, não podia deixar uma rusga na cama. Em seguida íamos á capela, assistíamos á missa, rezávamos até as sete horas da manhã. As missas eram celebradas por Frei Evaristo, Frei Anselmo. Em seguida íamos para o refeitório, onde comíamos um pão, sem nenhum recheio, e uma xícara de café com leite. As freiras davam o que podiam oferecer. Depois íamos para o lazer. Só que lazer não significava ir brincar e sim trabalhar. Umas varriam, outras limpavam os banheiros, separavam roupas. Descascar batatas. Molhar plantas, lavarmos as meias. Isso tudo até as dês e meia da manhã. Nessa hora, uma irmã batia as palmas da mão, como sinal para voltarmos ao refeitório. Comíamos arroz, feijão, polenta. Quando havia mistura (acompanhamento do prato principal), era uma verdurinha, chuchu. Nós sentíamo-nos felizes. Voltamos para o trabalho. Umas iam para a sala de costura, outras para a sala de bordados. Bordávamos muito enxoval de noivas. Ás quatro horas da tarde descíamos, comíamos metade de um pão, sem nada dentro. Depois que comíamos, brincávamos um pouco. Tinha a hora de brincar. Quando encerrava o tempo de brincadeiras, lavávamos os pés, íamos jantar. Normalmente o jantar era constituído de uma sopa, de feijão, de macarrão, de fubá, era sopa do que tinha. Voltávamos á capela onde rezávamos o terço. Rezávamos tudo o que tínhamos direito! Depois íamos dormir.

Aos domingos havia algum tipo de refeição diferente?

Ás vezes havia carne moída com pão. Comíamos retalhos de hóstia. As hóstias eram fabricadas pelas irmãs. (N.J. Este jornalista, como coroinha da Igreja Sagrado Coração de Jesus, por muitas vezes foi buscar hóstias no Lar Escola, era comum a irmã oferecer retalhos de hóstia, que tem um sabor agradável).

Quantas irmãs havia no Lar Escola na época?

Eram doze irmãs: Clara, Luiza, Joana, Escolástica, Maria Bernadete, Madre Gertrudes, Maria da Glória, Mamãe Cecília, Raimunda, as mais temidas, eram as Irmã Maria Ermelinda e Irmã Sofia.

Da Madre Cecília do Coração de Maria, a Mamãe Cecília, o que a senhora pode dizer?

Eu prestei um depoimento para o Vaticano sobre a Mamãe Cecília. Pelas suas realizações espirituais e materiais, a Congregação Irmãs Franciscanas do Coração de Maria em 1992, deu início ao processo de sua canonização. Todas as crianças que conviveram com ela foram procuradas para depor sobre a convivência com Mamãe Cecília no Asilo. Eu disse em meu depoimento, que lá foi o meu lar. Eu não tinha um outro local para ficar. Lembro-me claramente que logo que cheguei ao Asilo eu não conhecia absolutamente nada a respeito das regras de disciplina estabelecidas no local. Eu morava em sítio, na roça. Quando eu entrei no Asilo parecia que tinha uma melancia na goela (garganta). Deram-me uma saia azul marinho. Essa saia tinha um buraquinho. Eu enfiei o dedo naquele buraquinho, que já estava esgarçado. A Irmã Sofia viu e me falou que eu estava rasgando a saia. Eu disse-lhe que a saia já estava assim. Ela então me disse que pelo fato de eu ter enfiado o dedo o buraco ficou maior. Eu disse então que tinha sido um gesto sem a intenção de aumentar o defeito da saia. Ela pediu-me que a acompanhasse. Fomos até a lavanderia, ela deu-me uma agulha, e ordenou que eu costurasse o buraco. Costurei do jeito que eu sabia. Ela disse-me então que não estava bom, mas dava para passar. Disse-me ainda, que eu tinha que fazer o curso de corte e costura. Recebi também 12 bolachas na mão. De palmatória. Até hoje sou alérgica a batida. Fiquei triste. Fiquei sem vontade de comer. Mamãe Cecília mandou me chamar. Ela já era idosa, estava sentada com um cobertor sobre as pernas. Perguntou por que eu não comia. Eu contei-lhe sobre o fato acontecido. Ela disse-me, que sentasse no seu colo. Sentei-me. Então ela quis ver as minhas mãos. Mostrei. Ela perguntou-me porque a Irmã Sofia havia batido em minhas mãos. Eu contei a historia do buraquinho que já existia quando vesti a saia. Ela então argumentou que a causa da repreensão tinha sido o fato de eu aumentar o furo da saia. Eu disse para Madre Cecília: “-Ela (Irmã Sofia) bateu em mim porque ela não é a minha mãe. Minha mãe jamais faria isso”. Mamãe Cecília respondeu: “-Mas eu estou aqui”. Foi um momento muito especial. Esse meu depoimento está no Vaticano.

Como era o uniforme utilizado pelas internas do Asilo?

Nos dias comuns, usávamos as roupas que ganhávamos, o “se me dão”. Não tinha cor á escolher. Era marrom, preto, branco, o que tivesse usávamos. Mas nós tínhamos também quatro “pareio” de uniforme. Tinha um que era xadrez vermelho. Era um vestido com manga comprida. Tinha azul. Outro a saia era azul e a blusa era branca. O de gala era de fustão branco. Meu primeiro serviço foi o de engomadeira do uniforme de gala. O sapato era o correinha. Um sapato preto com uma tirinha. Parecia sapato de boneca. As meias eram brancas e o sapato preto. Nos dias em que não era de gala, o sapato era marrom. Sempre com meias.

O Asilo foi importante na sua vocação cultural?

Tudo que eu sei eu aprendi lá. Era regra o ensino ser ministrado até o quarto ano. A Irmã Maria da Glória, de forma muito discreta dava aulas particulares para mim: geometria, história natural, ela tentou ensinar francês para mim. Aprendi muito com essa grande irmã.

A senhora permaneceu no Asilo até que idade?

Até quase quinze anos de idade. Eu tinha então que dar espaço para outras crianças. Senti que deveria enfrentar um desafio: ter que encarar a vida de frente, praticamente sozinha. Uma das minhas irmãs me levou para São Paulo, fui de trem pela Companhia Paulista. Fiquei abismada por São Paulo. Trabalhei na tecelagem Manufatura de Tecidos Santa Helena. Voltei a ser interna em um colégio para menores em São Paulo, quando faltavam uns seis meses para completar 18 anos, vim para Piracicaba. Trabalhei na casa de Dona Gessy Nogueira Leitão. Eu dormia no emprego. Eu disse á Dona Gessy que ia bordar o enxoval da sua filha Amelinha. Quando completei dezoito anos de idade fui embora para São Paulo. Tinha uma irmã que trabalhava na Rua Frei Caneca, dormi lá. De lá fui para Santos, onde permaneci por quatro anos trabalhando como ajudante de cozinha do extinto Hotel Amapá. Bem no centro de Santos.

O que a senhora achou do mar?

Eu tinha 18 anos de idade. Levantava as cinco horas da manhã, pegava o bonde 32, ia até a praia, tomava um banho de mar voltava correndo, fazia almoço e lavava cem lençóis por dia. Ali permaneci até a idade de 22 anos. Folgava aos domingos das quatro da tarde até as seis horas. Eram duas horas de folga por semana.

Voltei para São Paulo. Passei a trabalhar no Hospital Santa Cruz. Foi quando conheci meu marido. Eu freqüentava o programa do apresentador Manoel da Nóbrega, pai do Carlos Alberto de Nóbrega. Ele tinha o programa “Balança Mas Não Cai”. Ficava na Rua Barão de Itapetininga. Lá comecei a namorar meu marido. Ele era pedreiro. Comprei um lote de terra em Santo Amaro, paguei em dez anos. Fiz uma casa de pau a pique. Tomava o ônibus Santo Amaro a Parque Primavera. A partir daí passei a trabalhar nas melhores casas. Trabalhei na casa do Dr. Ermírio de Moraes, Rodrigues Alves, para os donos do Leite Mococa. Eu era cozinheira dos funcionários que trabalhavam na sua casa. Eram 30 empregados. Ele era muito discreto, mas sempre educado. Cumprimentava a todos de forma amistosa. Uma ocasião eu cozinhei milho verde. Não era para fazer. Um dos seus filhos pediu para que eu cozinhasse milho para ele. Eu disse-lhe que não podia atender um pedido sem ordem da sua mãe. Ele insistiu tanto, que acabei fazendo. O menino devorou a espiga de milho cozido. Dr. Antonio passou e viu. Foi quando perdi meu emprego. Ele disse que as ordens dele eram para serem obedecidas. Meus filhos não podem comer nada fora de hora. Voltei para casa. Trabalhei na casa de Dona Maria Helena Rodrigues Alves, neta do presidente Rodrigues Aves. Na Rua Barão de Itapetininga em São Paulo havia uma agencia chamada Agencia Carusi de Serviços Domésticos. Trabalhei 22 anos através dessa agencia como faxineira profissional. Eu fazia uma faxina de dar gosto. Cheguei a ficar no 22º andar de um prédio, limpando vidro pelo lado de fora. Trabalhei seis anos para os Talans, cinco anos para a família de um químico da empresa Alfa Laval.

Como surgiu a escritora Carmela Pereira?

Eu sempre escrevi. Desde criança. Assim como a pintora também. Eu procurei me especializar em nosso folclore. O primeiro livro editado foi “A Gata Malhada”, voltado para o público infantil. Assim como a “Galinha Carijó”. O “Conflito Entre Os Astros” é um dos livros que eu gosto muito. O “Manual Da Empregada Doméstica” sozinha eu consegui vender 350 exemplares.

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