A professora e artista plástica Clemência Pecorari Pizzigati é descendente de várias gerações de artistas. Seu pai, seu avô, o pai do seu avô, e outros ancestrais fora exímios artesões em madeira. Ela ainda conserva alguns móveis construídos ou restaurados por eles. Uma das peças que mais impressiona é um armário de cozinha, cujas portas se movimentam através de um pino em cada extremidade, simplesmente não usam dobradiças! Panelas de cobre feitas por Francisco Crócomo, réplicas de peças medievais. Tudo em sua casa está na mais perfeita ordem. A arte está presente em todos os detalhes. Pastilhas de cerâmica com perfeita mobilidade, montadas em uma malha especial cobrem os braços dos sofás, dando um toque de rara beleza. O material utilizado pela artista é facilmente encontrado no comércio, muitas vezes ela transforma um objeto de uso pessoal, como um par de brincos em um magnífico suporte de uma rara relíquia. Talvez ela seja a única pessoa em Piracicaba que tem uma lasca do osso de Santa Clemência, autenticado com o selo do Vaticano! Para quem gosta de arte e da história que existe em cada objeto antigo, visitar Clemência é como um adolescente ir á Disneylândia! Com eterno bom humor, quebrado apenas quando o assunto é injustiça de qualquer natureza, Clemência tem sempre um sorriso carinhoso, que a torna mais carismática. Um grande número de ex-alunos, muitos ocupando cargos de destaque no Brasil, e até no exterior, rendem manifestações de apreço e carinho aquela que não se limitou apenas a ensinar a matéria de um currículo. Ela os educou para viverem. A função de formar pessoas com caráter, personalidade, visão da realidade. A legítima função de professora sempre foi exercida com brandura e firmeza por Clemência Pizzigati. Infelizmente hoje um professor para sobreviver carrega uma estafante, quase insana, carga horária. Muitas vezes a remuneração é insuficiente até mesmo para manter um padrão mínimo aceitável. Clemência é responsável por muitas obras espalhadas pela cidade, entre elas o painel que foi pintado no muro da Igreja dos Frades, com seus alunos do Colégio Estadual Jorge Coury. Recentemente foram pintados painéis sob a sua orientação, nos muros do Cemitério da Saudade. Um imenso painel foi idelizado e realizado por ela há trinta anos no Mirante do Rio Piracicaba. Hoje Clemência tem um sonho: fazer um memorável piquenique com a presença de seus ex-alunos e respectivas famílias, bem como a todos aqueles que quiserem participar. O objetivo é comemorar os trinta anos do painel instalado no Parque do Mirante. A data marcada é dia 12 de outubro próximo, um domingo, antecipando as comemorações do dia do professor. As adesões podem ser feitas com Miguel Salles no período das 17 horas até as 20 horas, tods os dias da semana, através do telefone (19) 3493.1581. Para os piracicabanos, particularmente aqueles que residem na Vila Rezende será um momento de nostalgia. Muitas famílias costumavam ir até o Mirante, para á sombra das árvores passarem momentos de lazer com a família, degustando os quitutes que traziam de casa. A seguir algumas das revelações feitas por Clemência em entrevista gravada na sua residência.
Existem algumas passagens marcantes em sua vida, uma delas é a visão do “follieri” na Piracicaba de alguns anos passados?
Eu não me lembro o nome completo dele, sei que é o pai do Francisco Crócomo, ele era folheiro, artesão que fazia panelas, lanternas, lamparinas. Uma profissão que na Itália era passada de pai para filho. Napoleão Bonaparte ganhou o território que conquistou porque a Nestlé na Suíça inventou o processo de armazenar a comida em latas. Quando a folha de flandres permitiu a fabricação de latas, o leite em pó, a comida em lata, foi a grande opção para alimentar os batalhões de soldados. Não foi só o material bélico que possibilitou os avanços das tropas. Eram latas de qualidade muito boa, que ainda hoje são encontradas, apesar de serem feitas por volta de 1800. Essas latas após serem utilizadas eram recebiam os cabos e tampas, transformando-se em utensílios domésticos como panelas como, por exemplo. Quando o pai do Francisco Crócomo, avô do professor universitário Francisco Constantino Crócomo, chegou ao Brasil, o país importava muitos alimentos enlatados. Peixe, cerveja, vinha tudo em grandes latas. Lembro-me de que o folheiro tinha um varão de madeira colocado sobre o ombro, onde na frente eram colocadas as peças oferecidas para a venda. O cliente poderia simplesmente adquirir ou permutar, uma caneca com cabo era oferecida em troca de três latas vazias. Aquilo era lindo, as panelas, frigideiras, canecas, eram dispostas em uma pilha dependurada nos varais. Ele saía vestido de terno de linho branco, gravata, com os filhos acompanhando. Ele descia pela Rua XV de Novembro, na época ele morava em local próximo onde hoje é o terminal urbano. Ele vinha descendo e gritando: “Follieriiiiii!”. Esse grito apregoando a mercadoria permanece nítido em meu ouvido até hoje! Quando ele chegava á Rua do Porto, o som ecoava sobre ás águas do rio, lá embaixo ouvíamos aquele grito. O barulho das peças dependuradas no varal se chocando iam dando um tom característico. Essa função foi trazida da Europa, onde era comum. Quando surgiram as indústrias de panelas no Brasil, eles passaram a trabalhar com calhas para telhados. O Francisco Crócomo, após aposentar-se, passou a realizar artesanato em cobre, e expunha na Praça da Catedral. Eram peças muito bem elaboradas, inclusive alambiques. Ele foi escolhido por uma iniciativa do governo estadual da época para ir expor em São Paulo. Ele passou a vender seu trabalho em uma feira de São Paulo. Um dia chegou até a feira um senhor de aspecto bem apessoado, desceu do carro conduzido por seu motorista, olhou as peças de cobre que Francisco Crócomo estava expondo e disse: “-Eu quero comprar todas as suas peças”. Passados uns quatro meses, esse homem veio até Piracicaba, procurando o Francisco Crócomo. Era na realidade um senhor italiano. Ele disse ao Crócomo: “-Esta chaleira foi feita pelo tataravô.” Ele disse que havia comprado todas as peças uns meses antes porque ele era da mesma cidade de origem do pai de Francisco Crócomo, e que foi vizinho deles na Itália! As peças confeccionadas em cobre pela família Crócomo na Itália recebiam um símbolo embaixo delas, caracterizando como marca própria. Francisco Crócomo desmanchou a chaleira feita pelo seu antepassado distante, fez o molde, e produziu uma chaleira para cada filho, três para o italiano e uma para Clemência Pizzigatti.
A senhora tem um modelo de chaleira idêntico aos que eram utilizados com mandrágora?
Tenho sim! É uma chaleira utilizada na Idade Média, onde muitas poções eram preparadas com as raízes da mandrágora, além de folhas e ervas. Eram utilizadas pelos alquimistas.
A senhora fez o cartaz de uma peça teatral realizada por alunos do Colégio Estadual Dr. Jorge Coury?
O cartaz foi feito utilizando a técnica de xilogravura. A peça “Dez Vidas” dirigida por Miguel Salles, com crítica de João Chiarini, foi encenada por alunos no Clube Cristóvão Colombo da Rua Governador Pedro de Toledo. Trata-se de uma peça abordando a Inconfidência Mineira.
A senhora conheceu o Clube Português em Piracicaba?
Conheci com todos os seus detalhes. Eu nasci em frente, freqüentei muito, fazia parte até histórica do clube! Existiam livros precisos de Machado de Assis, Eça de Queiroz, Os Lusíadas, completo. Havia uma mesa da presidência com uma cadeira que formavam um conjunto maravilhoso. Existiam cem cadeiras esculpidas pelo Nardin, de palhinha, que compunham o salão. Além de brasões, bandeiras. Era muito bonito.
A senhora morou em outras localidades além de Piracicaba?
Por 15 anos morei em São Carlos. Depois residi 11 anos em Águas de São Pedro.
A senhora lembra-se das Festas do Divino ocorridas na Rua do Porto?
Eu tenho 73 anos de idade, acompanho desde criança, conheço da Rua do Porto como eram as rezas, as contorias. A Rua do Porto quando começava a novena, todos eram envolvidos. Meu avô tinha a Arapuca lá. O Armazém do Pecorari, junto com a olaria era o meu ambiente. A minha mãe nasceu na Rua do Porto. A Festa do Divino até determinada época foi uma. Depois quando foi renovada, passou a ser uma festa pasteurizada. As crianças que participavam cresciam adultos com fé. Hoje é evidenciado o lado comercial. Houve um prejuízo na fé. As regras da Irmandade eram rígidas. Se um deles morria, eles permaneciam por quarenta dias andando descalços para fazerem penitencia. As atividades da Irmandade, de socorro econômico, de assistência, faziam com que a Irmandade existisse efetivamente. Minha mãe dizia que era barriga verde. Quem nascia na Rua do Porto á cidade chamava de Barriga Verde. Quando a cidade era pequena, a Rua do Porto era periferia. Havia um menosprezo com relação a quem morava na Rua do Porto.
O avô da senhora foi um líder da região da Rua do Porto?
O meu avô era um líder, um dos motivos é porque ele sabia ler e escrever. O nome dele de batismo era Xenofonte Pecorari, mas o povo não aceitava com facilidade chamá-lo de Xenofonte, ele passou a assinar como Afonso. Depois ele teve que apostilar o nome dele como Afonso Xenofonte Pecorari. Ele era um italiano que comprava barricas de vinho, de azeitonas, e em seu estabelecimento, o então chamado de secos e molhados, onde havia de tudo. Ele matava porco, fazia lingüiça, um dos produtos muito procurados chamava-se copa (defumado de carne suína). Eram vendidos no balcão sanduíches. As pessoas que iam pescar compravam seus apreciados sanduíches de pão com lingüiça. Era muito comum estarem por lá os membros das famílias Dutra, Pacheco. Aos fins de semana podia ser encontrado Lagreca, Erotides de Campos, gente da cidade. Formavam aquela roda, onde comiam e bebiam. Meu avô era sócio do Clube do Livro, e recebia livros em francês e italiano. Ele lia as histórias, tornando-se um bom contador de casos. Tinha uma freguesia que se sentava nos sacos de arroz, feijão, batata e ficava lá ouvindo as histórias, Ele assinava o jornal Fanfulla, depois passou a assinar O Martelo. As pessoas residentes nos bairros dos Marins, Pau Queimado, vinham pedir para ele escrever cartas. Pediam que ele arrumasse um advogado quando precisavam, e ainda que ele os acompanhasse. Ocasiões em que ocorria batismo, casamento, era na venda que acontecia. O correio entregava correspondências até a Rua XV de Novembro, não levava carta na Rua do Porto. O filho mais novo dele ia á Rua XV onde ficava guardada a correspondência e entregava as cartas para seus destinatários. Só que as pessoas que recebiam as cartas não sabiam ler! Eles iam ao armazém para meu avô ler as cartas! A Rua do Porto tinha uma vida interessantíssima, havia as casinhas dos pescadores, aquele pessoal simples, humilde. Á tarde eles colocavam uma bacia com água, sentavam na porta, para lavar os pés antes de dormir. Isso quem se lavava. Os que dormiam em rede tinham um pauzinho, quando ia deitar na rede para dormir, para tirar a terra do pé, raspavam com o pauzinho. Meu avô aplicava injeções, curava ferida. Qualquer um que estivesse doente minha avó já fazia uma canja para mandar. Naquela época ele vendia marcando as despesas em caderneta. Quando uma pessoa morria na família que comprava lá, ele fazia um “X” e perdoava o pagamento. Ele pertencia á diretoria da Società Italiana de Mutuo Socorro. Meu avô paterno, Natali Pizzigatti era bastante politizado. Ele estudava filosofia. Meu avô era da Irmandade do Santíssimo, usava a opa, ajudava o padre. No período da Revolução Constitucionalista de 1932, o Monsenhor Gallo, que era muito respeitado, subiu no púlpito, e passou a apregoar para que os casais que tivessem filhos homens para que os mandasse para a revolução. Meu avô Natali com sete filhos homens, saiu do altar, foi em frente do púlpito e disse ao Monsenhor Gallo que ele estava incentivando os filhos de outras pessoas para irem á frente de combate pelo motivo de não ser pai! “Essa revolução é uma luta de irmão contra irmão!” disse ele. Ficou uma polêmica muito grande dentro da igreja. Meu avô Natali teve uma grande atuação como elemento formador de opinião para as massas, a ponto de algumas pessoas recomendarem á meu pai, que procurasse controlar as ações do meu avô!



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