Em uma ocasião…
O inverno chegou. Percebi que algo estava errado comigo. Tosse, febre, rouquidão. A queda brusca da temperatura levou muita gente aos hospitais. Decidi seguir o conselho de um amigo. Fervi água, coloquei açúcar, adicionei cravo, gengibre e canela em pau. Tomei umas duas xícaras daquele chá, com duas aspirinas. Tremendo de frio me enfiei embaixo de dois edredons.
Tenho por hábito todos os dias pela manhã ir até a padaria Jacareí, localizada na esquina da Rua Boa Morte com a Rua São Francisco de Assis. (Essa rua há muitas décadas passadas foi denominada de Rua Saldanha Marinho). Os pãezinhos quentinhos parecem ter um aroma especial. Volto, subindo pela Rua Boa Morte, passo em frente a Estação da Paulista, e logo estou em casa.
Certa manhã, deparei-me com uma mulher, usando um vestido com muitas cores, cabelos loiros, longos, um brinco em forma de argola, muito brilhante, pulseiras douradas, diversos anéis nos dedos, parecia uma versão dos hippies da década de 60 ou 70. Sentada em uma mureta, abriu um sorriso que mostrou alguns dentes recobertos por ouro. Tinha em sua face uns sulcos, aqueles que o tempo traz. Devia ser muito vaidosa, pois tentava disfarçar com a maquiagem um pouco carregada para aquela hora da manhã.
Segui o meu caminho, não trocamos nenhuma palavra.
Degustei o pão quentinho, com um café preto e forte. Segui para o meu trabalho. No período da tarde, caminhando pela Rua Benjamin Constant, ouvi alguém chamando pelo meu nome. Era o José Carlos de Oliveira, estava em frente a sua joalheria. Sempre foi uma figura marcante. Magro, alto, seu sorriso parecia que tinha aberto a tampa das teclas de um piano. Dentes alvos. Em uma meia hora de conversa abordamos assuntos do passado e do presente. Colocamos nossa pauta em dia.
Sempre admirei o José Carlos! Negro, de origem humilde, família grande, a sua persistência, seu caráter íntegro, o transformara em um comerciante de sucesso e em chefe de família exemplar. Ele, eu, o Belloto, o Novello, o Dimas, o já falecido Alonso, e muitos outros, cujos nomes o tempo retém, fomos por muitos anos coroinhas da Igreja dos Frades. De manhã, todos os dias, ajudávamos na celebração das missas. A primeira começava às 5:30 horas da manhã, depois tínhamos um delicioso café com leite e pão com manteiga. A seguir, jogávamos ping-pong, que hoje denominam com o sofisticado nome de tênis de mesa! Jogávamos futebol. Havia um pomar de plantas frutíferas, que como pequenos gafanhotos devorávamos.
Havia uma sala anexa à sacristia, onde colocávamos sobre a nossa roupa usual, a batina e sobre a batina o roquete, uma veste de tecido branco, rendado que cobria a parte superior da batina. Nos dias comuns a batina era marrom de tecido grosso, aos domingos a batina era vermelha de cetim, e em ocasiões festivas era azul de cetim. Sempre com roquete engomado e impecável. Havia uma disputa não declarada para ser o coroinha que ficava ao lado direito do celebrante. A esse coroinha, cabia segurar a patena, uma pequena bandeja ovalada, logo abaixo do queixo de quem tomava a comunhão. Era quem levava as galhetas de água e vinho para o celebrante. O toque do sino para os fiéis se ajoelharem ou levantarem-se era da sua responsabilidade. E em cerimônias magnas havia uma disputa entre os coroinhas para carregar o turíbulo, um receptáculo de metal, com brasas ardentes e três correntes. Ao ser balançado, as chamas se avivavam e o celebrante colocava pedrinhas de incenso, formando uma névoa sagrada sobre os fiéis.
Por bons anos, José Carlos e eu frequentamos a Igreja dos Frades. Um dia fui chamado pelo Frei Guardião. Havia chegado a hora de deixar de ser coroinha e caso fosse a minha vontade seguir os estudos em um seminário. Foi uma decisão difícil, mas eu já tinha o desejo de formar uma família. Muitos anos se passaram, até o dia em que o José Carlos me reconheceu e chamou. Conversamos muito, e olhando pelo balcão vi um anel de ouro, que embora pequeno, tinha a superfície retangular, era discreto e muito bonito.
Ele percebeu que eu havia gostado, tirou do mostruário e o anel parecia mais bonito ainda. José Carlos, já sabendo da minha resposta, perguntou-me se havia gostado. Disse-me, leve-o! Olhei o preço, e falei que estava fora do meu orçamento. Foi quando ele me ofereceu a possibilidade de poder pagar em três vezes, sem acréscimo. Falou que havia comprado um lote de jóias de um fornecedor novo, e aquele anel veio para ver como o público reagia. Não resisti. Saí dali com aquele anel.
No dia seguinte, voltando à rotina, fui logo cedo buscar os pães. Passei pela cigana, que já me cumprimentava. Percebi que os olhos verdes dela fixaram em meu recém-adquirido anel. Perguntou-me se eu queria vender, eu disse-lhe que não, pois tinha acabado de comprar. E segui meu caminho.
Durante uma semana a cigana sumiu. Fiquei curioso com seu paradeiro, mas sabia que ciganos não criam raízes. No oitavo dia lá estava ela, vestida com capricho, em suas roupas multicoloridas, jóias reluzentes ao sol. Foi logo me perguntando se havia sentido sua ausência e se eu estava com o anel.
Disse-lhe: “-Achei estranho a senhora desaparecer, mas poderia ter mudado de local”;
Mostrei-lhe o anel em minha mão. Seus olhos ficaram entre verdes e azuis, olhava com paixão aquele aro discreto e exótico.
Ela disse-me então: “ Estive ausente, estudei muito a sua vida, sei seu nome. Suas raízes, familiares, seus amigos, jejuei e meditei, você sempre me tratou com respeito e atenção. A propósito, meu nome é Gitana. Vamos trocar presentes: esse seu anel foi da minha família por diversas gerações. Em troca dele, você irá fazer uma viagem muito rara. Às sete horas , passará um trem pela estação. Poucos tem o dom de ver esse trem. Você irá embarcar, ele estará cheio de pessoas que você conheceu. Elas não poderão ve-lo ou tocá-lo. Esse trem irá até São Paulo e voltará no horário que sempre voltou.
Na hora pensei: já não chegam as ligações que recebo todos os dias me oferecendo ofertas imperdíveis, como o golpe do PIX e do bilhete premiado, mas esse é novo para mim!
Gitana olhou-me fixamente, e me falou de forma serena: “-Acredite João! ”
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Foi pior, gelei. Como ela sabia o meu nome?
“-É fácil. João, temos uma conexão neural.
Entreguei-lhe o anel. O relógio marcava 6:55 horas. Corri para a plataforma de embarque, totalmente vazia.
Às 7:00, um trem parou à minha frente, com muitos carros (vagões são para cargas, carros são os vagões de passageiros). As portas se abriram, entrei e logo se fecharam.
O carro do trem estava com um burburinho imenso e eu estava literalmente congelado. Imóvel. Testei minha coordenação motora movimentando mãos, braços, constatei que estava vivo. As mesas estavam todas ocupadas, repletas de iguarias e bebidas finas. Na hora, lembrei-me da antiga crença nórdica, cujo destino dos guerreiros era Walhala, onde havia banquetes intermináveis.
Passei a observar as fisionomias das pessoas. De imediato, em uma mesa enorme, vi os membros da minha família. Estranhamente não chorei, vi que todos estavam muito felizes, conversando, rindo muito. Devo ter ficado um bom tempo contemplando-os. O contato físico era impossível, e nem eles sabiam da minha presença. Caminhei até uma mesa onde estavam sentados João da Curva e seu irmão, cujos nomes cartoriais me reservo o direito de resguardar. Moraram na Rua Alferes José Caetano, próximo à Rua Ipiranga. Tinham histórias fantasiosas. João da Curva tinha fama de caçador e pescador. Isso no tempo em que Piracicaba tinha animais de caça. Munido de sua espingarda de carregar pela boca, foi lá pelas bandas da Rua do Porto, onde os animais iam matar a sede. Havia um veado, que João da Curva estava mirando com sua espingarda. Atirou, mas o bicho foi muito rápido e contornou uma enorme pedra, escapando do tiro. Injuriado, procurou o Zé Ferreiro, ferrador de cavalos, e pediu para que ele fizesse uma curva na sua espingarda. O Zé achou que João estivesse maluco. Mas, habilidoso, atendeu o pedido do cliente.
João montou vigília em local estratégico. Horas de espera, desanimado, eis que surge o veado. João mirou, mediu com o olhar o ângulo correto, e quando o animal passou, percebeu logo o perigo, e virou no mesmo local da pedra O tiro, seguindo a curvatura da espingarda, atingiu em cheio a ponta do chifre do animal, que correu ainda mais, assustado. Sentados à mesa ,estavam o irmão de João que confirmou a história, e como ouvinte Abel Bueno. Para quebrar o silêncio, João, que após essa façanha passou a ser conhecido como João da Curva, não deixou por menos.
Empolgado por sua façanha, disse ter passado pela então relojoaria Muller, na Rua Prudente de Moraes, quase esquina com a Rua Alferes José Caetano e visto um relógio de pulso que era a maior lindeza já vista! Não dormiu naquela noite! Só pensava no relógio. Era vistoso, alemão, todos os dias dava corda, não havia relógios automáticos e muito menos a pilha. No dia seguinte, João da Curva sacou dinheiro que tinha na poupança e adquiriu o tão sonhado bem. Andava com o braço bem exposto. Em uma tarde modorrenta, avisou a mulher que iria pescar. Pescava sempre ali perto de onde hoje é o Museu da Água. Quase cochilando, sentiu um puxão na vara de pesca. Experiente, percebeu que era peixe grande. Tinha que cansar o bicho, então puxava e soltava a linha; foram minutos de luta homem-peixe até conseguir tirá-lo do rio. Era um pintado de uns 10 quilos, ou mais. João da Curva subiu a Rua Moraes Barros desfilando com o seu troféu. Chegando em casa chamou a mulher e a vizinha, que era o WhatsApp da época, a Dona Candinha. João da Curva viveu momentos de grande pescador.
No dia seguinte, veio o desespero. Tinha perdido o relógio. Foi correndo até a barranca do Rio Piracicaba, por umas três horas, procurou seu bem maior. Voltou desconsolado. Jurou que nunca mais iria pescar. Passava os dias jururu, a tragédia o abalara. Sua mulher, Dona Zéfinha, fez até promessa para tirar o coitado daquela tristeza. Uns seis meses depois, em um dia ensolarado, João da Curva, cabisbaixo, pegou a tralha de pescar e foi até a barranca do rio. Bem no lugar que costumava ficar. O silêncio só era quebrado pelo barulho das águas. João, recostado em uma árvore, escutou um suave barulho: tic-tac, tic-tac. Olhou na beira do barranco e para sua surpresa, dependurado em um galho, estava o seu maravilhoso relógio.
Abel Bueno, que até então só tinha ouvido a narrativa, perguntou:
“ Mas João ,quem dava corda no relógio? ”
Muito solícito, João da Curva foi logo explicando:“ Tinha um galho menor que roçava no parafuso externo que dava corda”. Foi assim!
Abel não deixou por menos. Foi logo dizendo:
“-Pois comigo aconteceu coisa diferente também! Eu queria pescar um pintado, mas na Rua do Porto só tinha anzol de lambari. Estava muito calor, pensei, vai de lambari mesmo! ”.
E continuou contando: “ Lá para baixo tem um gramado que fica beirando a água, quase no mesmo nível do rio. Joguei o anzol de lambari e segurando a vara de bambu, fiquei na espreita .”
Uns quinze minutos depois, achei que tinha enroscado em alguma coisa. Puxei devagar, veio vindo, percebi que era peixe grande. João, você acredita que o peixe deu um salto e caiu na grama! ” Eu não acreditava, pesei, deu doze quilos e meio, era o maior pintado que eu tinha pescado na vida. Não entendia como tinha pescado com anzol tão pequeno. Quem descobriu foi o Zé Queixada (José Silva, protético prático e pescador nas horas vagas). O anzol tinha enganchado em uma cárie do dente do pintado, por isso ele pulou na grama. Ninguém abriu a boca! Era muita mentira de dois pescadores e um caçador!
Essa viagem até São Paulo foi longa, andando pelo trem fui ouvindo muitas histórias, umas factíveis. Outras talvez sim ou talvez não. Quanto à Gitana, nunca mais retornou àquele lugar. Às vezes nos falamos pelo WhatsApp.
Acordei, aquela infusão, a aspirina, e os edredons, fizeram efeito. Eu estava ensopado de suor. Levantei-me, passei um longo tempo embaixo do chuveiro, tinha tido um longo sonho ou era algo diferente? Me sentia muito bem, renovado. A tarde estava agradável, tomei um bom lanche e telefonei para a Glorinha, amiga de infância, que além da formação acadêmica na área da saúde, tinha profundos conhecimentos da espiritualidade humana. Eu queria entender o que havia acontecido comigo. Teria sido apenas um sonho ?…
Acadêmico: João Umberto Nassif
Patrono: Prudente José de Moraes Barros
Academia Piracicabana de Letras.