Rio de Janeiro, 3 de maio de 2025, praia de Copacabana.
Na calçada de neon da realidade, Lady Gaga surgiu ou talvez tenha sido invocada entre os sons das sirenes digitais e os holofotes que piscavam como olhos elétricos.
Era um sábado de nuvens quadradas, brisas suaves e celulares erguidos como oferendas. O mundo, numa espiral de consumo e imagens, parou para ver Lady Gaga. Coberta de lantejoulas, desceu do alto de um holograma como uma entidade pop. Era uma visão estranha e brilhante saída de um sonho misturado com pesadelo. Nos pés, os sapatos novos da cobra.
Aquela cobra do Éden, antes da queda, quando ainda tinha perninhas como mostram as velhas ilustrações bíblicas, mais próximas do mito que da ciência caminhava, saltitava e talvez dançasse. Vestia sapatos de couro batido, adornados com pedras preciosas africanas, serpenteando pela relva do paraíso com vaidade ancestral. Era moda, era magia, era liberdade antes do castigo.
Tudo ruiu num só gesto: a maçã mordida, o eco do grito de Eva, e o castigo que levou não só as pernas, mas também o orgulho da cobra. Desde então, ela rasteja, mas no fundo, sempre quis dançar de novo. Precisava de sapatos novos não qualquer par, mas aqueles capazes de carregar o peso do desejo humano e da culpa original.
Os sapatos de Lady Gaga eram esse desejo ancestral, mítico e ao mesmo tempo futurista feitos entre o real e o virtual, com feitiço e brilho de Las Vegas, manufaturados em impressoras 3D que obedecem a comandos de algoritmos de estilo. No palco surreal do Éden recriado por LED e batidas de tambores techno, Lady Gaga não canta: ela profetiza. Dança com mil pernas, cada uma com um sapato diferente. A coreografia é um rito. A música, um feitiço.
O público em transe aplaude com os olhos vendados por telas luminosas. Seguidores digitais em êxtase replicam o momento. O propósito projetado com intenção mercadológica e mística funde-se com a estética da propaganda. Há cartazes de cobras dançando nas vitrines, perfumes com cheiro de maçã mordida, slogans pulsando em ritmo cardíaco. A tentação agora é fashion. A fé virou performance.
A coreografia conduz os corpos como códigos programados, desafiando os limites do gênero, da identidade e do próprio corpo. Gaga é Adão, é Eva e é também a serpente. O Gênesis reencenado revela um novo surrealismo: o paraíso não era só um jardim, mas também um palco. A serpente com perninhas reaparece como influencer primordial, desafiando a obediência com estilo.
Seus antigos sapatos apertaram diante da evolução do desejo humano. Os novos, mais folgados, deram-lhe nova forma e liberdade menos animal, mais símbolo. Cada passo, porém, afasta do pensamento se aproxima da performance perfeita.
Lady Gaga nos apresenta um espetáculo que é tanto oferenda quanto armadilha. Exagerado? Sim. Mas necessário para capturar a atenção de uma geração que só responde ao extremo. Mais do que um show, é uma invocação: reposicionar a serpente na sociedade de consumo e da imagem.
E então, fica a pergunta: será que a cobra um dia andou de salto alto? Ou será que todos nós estamos rastejando?
Cuidado com o brilho dos sapatos novos polidos com tecnologia e promessas porque a picada da cobra continua sendo silenciosa.
Walter Naime
Arquiteto-urbanista
Empresário.