Acadêmico João Umberto Nassif – Cadeira 35 – Patrono Prudente José de Moraes Barros
A poltrona de número J18, do avião Boeing-737, está ocupada por um senhor elegante, fisionomia de traços bem definidos, seus cabelos brancos denunciavam que já tinha passado por muitos natais e carnavais. Sua estatura era comum à maioria dos brasileiros. Seu vigor físico denunciado pelos músculos dos braços, poderiam levar a supor que tinha sido um atleta. E de fato foi.
Voando sobre as nuvens, de tempos em tempos era paparicado pela atenciosa aeromoça, com acepipes e bebidas variadas. Com um sorriso de comercial de televisão, delicadamente perguntou-lhe: “-O senhor quer mais um travesseiro? ”. Delicadamente ele respondeu que não e agradeceu.
Joel Santana acomodou-se no confortável assento do avião onde seu pensamento voltou meio século, para o dia em que seu pai Severino Santana, sua mãe Ana de Jesus Santana e seus irmãos Cicero, ainda no colo da mãe, Maria com dois anos de vida, Maria das Dores, com quatro anos, Miguel, com seis anos, Thiago com 7 anos, Juscelino com 10 anos e ele, Joel com onze anos. Junto com desconhecidos, viajaram por dias sentados em bancos de madeira, na carroceria de um caminhão. O famoso Pau de arara. Uma viagem sofrida, mas tinham esperança de dias melhores. Ninguém reclamava. O destino era a cidade que mais crescia no Brasil: São Paulo! Uma febre tomava conta de todos, indústrias precisavam de braços. Havia disputa das empresas por mão de obra, qualificada ou não. A distância entre Fortaleza e São Paulo é cerca de 4.660 quilômetros por rodovia. De avião são 2.332 quilômetros. Atualmente, de ônibus, essa viagem é estimada em dois dias e nove horas. Viajando em Pau de arara, computando as paradas para descanso ou problemas mecânicos, a viagem durou cerca de trinta dias e trinta noites. Em São Paulo, um primo da minha mãe estava nos aguardando. Cansados e famintos, fomos acolhidos naquela bendita casa. Dois dias após a chegada, meu pai já estava trabalhando como ajudante em uma oficina mecânica. Minha mãe foi trabalhar como diarista em casas de famílias conhecidas do seu primo. Eu tinha completado 12 anos, fui ajudar na padaria da na qual o proprietário era um português com forte sotaque. No início, eu fazia faxina e varria o chão.
Dois meses depois da nossa vinda, o primo da minha mãe, o Alencar, como era conhecido, arrumou uma casa em uma vila que tinha quatro cômodos e como luxo, um banheiro! A igreja do bairro nos ajudou, doando móveis e colchões, fogão e até mesmo uma geladeira. Tudo usado, mas em bom estado. Lembro-me que a cama ainda tinha um selo com a sua marca: “Patente”. Dois anos após a nossa vinda para São Paulo, meu pai já tinha se tornado um mecânico habilidoso e minha mãe tinha muitas casas para fazer a faxina. Seu Manoel passou-me para o atendimento de clientes no balcão. Como eu era muito observador, via o Oscar, que era o chapeirão, fazendo os lanches e assim, na teoria, eu aprendi o ofício.
Um dia, o Oscar faltou. Seu Manoel, em desespero, não via outra solução, olhou-me nos olhos e disse-me: “ Ó menininho, vejo que olhas o Oscar trabalhando; és capaz de fazer lanches? ” Afirmei que sim. Com segurança caminhei para a chapa e os demais funcionários ficaram na expectativa. Os clientes eram os mesmos, eu conhecia o gosto de cada um. Procurava colocar uma fatia a mais de queijo, de presunto, caprichava no lanche.
O Oscar estava vivenciando uma nova fase em sua vida. Era solteiro, com cerca de 40 anos de idade, quando teve uma paixão súbita por uma moça bem mais jovem. Estava gastando suas economias de anos, com a sua recente paixão. Disse adeus à chapa e colocou o pé na estrada, junto com a amada.
Joel passou a ser o chapeiro oficial da Padaria Portugal, situada em um dos bairros de classe média alta de São Paulo. Em suas horas de folga, frequentava as padarias que estavam na moda. Sentava-se e pedia um lanche. Ficava observando tudo. Assim foi trazendo novidades para a Padaria que trabalhava. O movimento foi aumentando. Seu Manoel estava feliz com a troca. Aos poucos, Joel foi completando os estudos. Após o básico, realizou o antigo Curso de Madureza e cursou a Faculdade de Administração de Empresas. Além de um bom salário, as gorjetas que os clientes davam eram um bom rendimento.
O movimento começou a crescer a tal ponto que Joel ganhou um ajudante, o Penha, que desempenhava a função com maestria. Seu Manoel, viúvo, sem filhos, há muito pensava em “dar uma volta até Portugal”, como sempre dizia. Percebeu que se colocasse Joel como gerente da padaria e um auxiliar para o Penha, a Padaria Portugal estaria em boas mãos, pelo menos por um mês. Dito e feito. Passou um mês em Portugal, visitou a aldeia em que nascera e a deixou ainda muito jovem, reviu parentes, amigos de infância. Deliciou-se com a culinária portuguesa.
Voltou ao Brasil, a Padaria Portugal estava repleta, e para a sua surpresa, seus funcionários tinham criado novos tipos de pães e um “donuts” brasileiro, que vendia muito.
Enfim, Seu Manoel pensou consigo mesmo: “ Este gajo é do ramo! ” . Por alguns dias ruminou a ideia de aposentar-se. Já tinha um sólido patrimônio, e a viagem à Portugal o fez pensar que a vida não é só para trabalhar. Joel havia contribuído muito nos dez anos em permanecera na padaria, para que o patrimônio de Seu Manoel aumentasse. Isso por si só, o motivou a oferecer-lhe a padaria para que Joel a comprasse. Sabia que ela se pagaria em pouco tempo.
Joel aceitou a proposta. Ao lado da padaria, havia uma casa à venda que com suas economias, ele a adquiriu e a demoliu. Ia ampliar a padaria. Contratou uma arquiteta, que integrou o ambiente da padaria junto ao restaurante para refeições rápidas. Elza Beckher, uma jovem de origem alemã, nutricionista e administradora de empresas foi contratada, com salário e participação acionária na empresa. Foram contratadas garçonetes escolhidas pela competência, cozinheiras que elaboraram um cardápio simples, com preço acessível e muito criativo. Timóteo Correia, era um cearense que tinha trabalhado nos Estados Unidos, onde fazia o café da manhã de um grande hotel. Era mestre em panqueca, fazia malabarismo com elas, e encantava os clientes. Era conhecido como Tim. Um outro cearense, enorme, forte como um touro, tinha morado na Alemanha, França, Portugal e trabalhado como doceiro nesses países. Era Jacó Medeiros, o “Sweet Jack”, ou simplesmente Jack. Olímpio Mourão era um pernambucano que trabalhou muito tempo na Itália. Entendia tudo de massas e pães; estava formado o time.
Na inauguração da nova Padaria Portugal, o Sr. Manoel Almeida, antigo proprietário foi o convidado de honra. Em pouco tempo a padaria tornou-se um sucesso retumbante. Havia filas para entrar. Isso levou Seu Manoel às lágrimas de alegria.
Joel era um empreendedor nato. Com esse time, montou o que chamaríamos de segunda divisão, ou seja, aprendizes. Passou a procurar padarias “caídas”, ou seja, mal administradas, em bairros de classe alta. Geralmente os proprietários estavam ansiosos por livrarem-se desses estabelecimentos. Joel os adquiria, fechava, vendia as instalações antigas e reformava o prédio conforme as orientações de Ana Steves, a arquiteta. Colocava os funcionários que passaram pelo aprendizado na Padaria Portugal e a padaria passava a encantar o bairro. Os lucros eram altos e divididos entre os acionistas.
As rodas do avião tocam o solo e fazem Joel despertar de suas lembranças. Finalmente estava em Fortaleza. Sentiu seu coração bater mais forte. Desde que tinha saído de Fortaleza, aos doze anos de idade, nunca mais voltara. Após desembarcar, foi de taxi até o Plaza Hotel, onde tinha sua reserva. Ficou em uma suíte com frente para o mar, à 20 metros da Praia de Iracema. Deslumbrado com o progresso da cidade, foi admirando a belíssima cidade onde nascera. Já instalado no hotel, tomou um banho, colocou uma roupa esportiva e foi passear pela avenida que beirava o mar. Era tudo um sonho. A natureza oferecia um espetáculo maravilhoso. A alegria das pessoas na praia era contagiante. Ainda em São Paulo, tinha sentido os sintomas de rinite. Passou por uma farmácia e adquiriu um antialérgico, em pouco tempo sentiu a coriza nasal estancar. Foi um grande alívio. Sua rotina era levantar, tomar um delicioso café da manhã, ir até a praia, onde permanecia por algumas horas. Em seguida fazia a visita aos parentes e amigos com os quais já havia feito contato prévio e conseguido o endereço. Apesar do tempo decorrido, foi recebido calorosamente por todos, com almoços, jantares e bebidas típicas da região. Foram dias muito festivos e emocionantes.
Como nem sempre tudo é perfeito, passou a observar que o funcionamento dos seus rins estava muito lento. Ingeria muito líquido e expelia pouco. Continuava a tomar o antialérgico conforme fora orientado. Tinha comprado vários conjuntos de calça e camisa de algodão branco, feitos com muito capricho pelas costureiras e bordadeiras cearenses. Eram leves, frescos. No seu último dia de permanência em Fortaleza, foi uma lambança gastronômica, incluindo diversos tipos de sucos. Recolheu-se ao hotel, para no dia seguinte pela manhã embarcar em seu voo para São Paulo. As chaves do apartamento eram cartões magnéticos, com uma senha própria. Ao chegar em sua suíte, sentiu uma imensa necessidade fisiológica de expelir líquido pelas vias naturais. O cartão simplesmente não abria a porta. Foi até a recepção e a amável recepcionista disse-lhe que poderia ter sido a falha de energia elétrica que ocorreu durante o dia. Imediatamente mudou sua senha e disse que podia subir. Joel, com passos curtos, e pernas contraídas dirigiu-se ao elevador. Sentiu que era tarde demais. Subiu as escadas que ficavam ao lado, e em profundo desespero tentou segurar o liquido que sua bexiga expelia. Suprema humilhação para um homem ainda jovem. Conseguiu apanhar um elevador vazio. Pediu por telefone a vinda de uma camareira enquanto se trocava. Assim que a camareira chegou, ele com algumas cédulas de dinheiro na mão, disse-lhe: “- Derrubei água na escada entre o primeiro e segundo andar, a senhora pode limpar, por favor? ”. Olhando aquelas cédulas, que logo foram para suas mãos, ela assentiu com a cabeça, talvez até contendo uma gargalhada.
Joel pensou: “Chegando a São Paulo vou ao Dr. Castro! ”. No dia seguinte, tomou o seu café habitual, foi para o Aeroporto Internacional de Fortaleza – Pinto Martins. Um turbilhão de pensamentos passava pela cabeça. Após chegar a São Pulo, dirigiu-se para o seu apartamento na Alameda Lorena. Começou a desfazer a mala. Eis que surge uma caixinha vermelha do antialérgico. Imediatamente ele passou a ler a bula. Entre os efeitos colaterais estava a retenção urinária. Ou seja, o efeito do remédio acabou exatamente quando ele chegou no hotel, e todo liquido retido durante o dia foi expelido involuntariamente. Joel não sabia se ria ou chorava, mas aprendeu uma grande verdade: sempre leia a bula antes de tomar qualquer medicamento. Os médicos indicam corretamente, mas o paciente pode ter esquecido de contar algum detalhe importante sobre a sua reação a medicamentos.