PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 17 de março de 2012
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
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ENTREVISTADO: ARNALDO LEITE
Por décadas ir ao cinema significava muito mais do que ir assistir um filme. Envolvia um processo de preparação, a preocupação com que roupa ir, quem seriam as companhias, se fosse um casal de namorados a adrenalina aumentava, pois em uma época em que os costumes sociais eram muito rígidos, aquele era o momento em que podiam estar mais próximos, conversarem sem a severa vigilância doméstica. Existia em alguns casos a famosa figura da “vela”, era uma criança que acompanhava os namorados, podia ser um irmão mais novo, sobrinho ou até mesmo uma amiga da namorada. Funcionava como uma espécie de fiscal do comportamento de ambos, cujo “relatório” era dado à zelosa mãe. Por décadas, qualquer casal de namorados jamais retornava à casa da namorada após 22h. Só mesmo em ocasiões especialíssimas, como um baile, geralmente de carnaval, onde pais e parentes estavam o tempo todo presente. Com isso ir ao cinema além de assistir a apresentação de um filme, envolvia a oportunidade de proximidade da pessoa amada.
O cinema tinha uma importância marcante, desde a programação veiculada através dos jornais, quando determinado filme ganhava o título de imperdível. Artistas famosos eram avaliados pelo seu desempenho, idolatrados, com seus hábitos impunham costumes aos jovens da época. Penteados, roupas, comportamentos, tudo era imitado de seus ídolos. Um mundo de sonhos e imaginação.
Arnaldo Leite participou ativamente de grande parte da história do cinema em Piracicaba. Lembra-se de cada detalhe vivido naquela época. Nascido à 19 de agosto de 1932, no distrito de Piracicaba, entre os bairros rurais de Anhumas e Ibitiruna, uns 40 quilômetros distantes do centro de Piracicaba. Filho de Antonio Leite da Silva e Catarina Penha Bernal.
O pai do senhor tinha uma propriedade rural?
Tinha um sítio de 12 alqueires paulistas, cada alqueire mede 24.200 metros quadrados, onde criava boi, porcos, frangos. Permaneci lá até completar 15 anos, estudei até o terceiro ano escolar na escola em Anhumas, situada a uns seis ou sete quilômetros, ia a pé e descalço, tinha um amigo que residia nas proximidades, íamos juntos à escola. Quando voltava para casa isso em torno de meio dia à 1h, ia ajudar meu pai na plantação. Conforme podia pegar no cabo da enxada já passava a ajudar.
A que horas o senhor acordava?
Às seis horas da manhã. Socava dois litros de arroz no pilão, pegava o arroz em casca, socava para tirar a casca, peneirava, ficava uma espécie de arroz integral, a minha mãe fazia o almoço com ele. Saia de casa às sete horas da manhã e ia para a escola.
E o café da manhã como era?
Café com leite, logo cedo minha mãe tirava o leite, eu tomava quase um litro de café com leite, pão feito em casa, feito com leite. Chegava 8h em ponto na escola. Isso foi de 1941 até 1943. Meus avós moravam em Santa Maria da Serra, foi lá que fiz a quarta série, em Anhumas ainda não existia. Eles tinham um monjolo.
O que é um monjolo?
Era um equipamento rústico, movido a água, destinado ao beneficiamento do milho para fazer fubá, e depois fazer a farinha de milho. O milho fica curtindo na água por uns quatro ou cinco dias, depois vai em em uma espécie de pilão, a própria água tem uma espécie de bica que acumula em uma peça e a levanta, à semelhança de uma gangorra, ao transbordar o líquido ele é despejado, dando um golpe forte na outra ponta, socando o milho. Depois de socado vai em um tacho quente, onde é quebrada aquela massa fazendo a farinha de milho.
Como o cliente pagava pelo serviço de moer o milho e fazer a farinha?
Existia uma regra pré-estabelecida, onde tantos quilos de milho em natura são permutados por determinada quantidade de farinha. Eu ia à escola e na volta dava uma mãozinha também. Quando conclui o quarto ano escolar voltei para a casa dos meus pais.
Por que o pai do senhor vendeu a propriedade da família?
A 31 de janeiro de 1947 deu uma chuva de pedra que acabou com os cinco alqueires de algodão que o meu pai tinha plantado. Não ficou um pé de algodão. Naquela época era comum comprar no armazém por ano, então a produção que iria ser colhida e vendida é que fornecia o dinheiro para pagar as contas, feitas ao correr do ano. Ficamos na mais absoluta falta de dinheiro, viemos para a cidade para carpir cana. O armazém onde comprávamos passou por vários donos, o Righetto, o Moraes, o Moral.
Esses comerciantes tiveram um prejuízo significativo também?
Não receberam de imediato, mas o meu pai vendeu o sítio para poder pagar as dívidas. Meu pai passou a trabalhar na Escola de Agronomia, na época o governador era o Dr. Adhemar de Barros, e por algum desencontro administrativo o salário do meu pai atrasou muito. Foi mais um motivo que o levou a vender o sítio, nessa época ele já estava devendo no armazém do Vitório Fornazier, na Paulista, onde atualmente situa-se o Supermercado Balan. Quando nós mudamos para a cidade passamos a ser fregueses a prazo de Vitório Fornazier. Lembro-me do Armazém do Aliberti, situado na esquina da Rua do Rosário com a Avenida Madre Maria Teodora, inclusive aos domingos eu ia ajudá-lo a rastear o boche, eu não tinha quase força para puxar o rodo e nivelar a cancha. A bola de boche era de madeira.
O senhor passou a trabalhar em que local?
A 27 de abril de 1947 passei a trabalhar na Casa Coury, situada na esquina da Rua XV de Novembro com a Rua Governador Pedro de Toledo, onde hoje é a loja Charm Cosméticos. Os proprietários eram os três irmãos Coury: Alexandre, Michel e Raja. Era um estabelecimento que trabalhava só com tecidos.
Como saindo do sítio o senhor foi trabalhar com tecidos?
Eu comecei a fazer a documentação para trabalhar na fábrica de tecidos Boyes, que naquele tempo era o ganha pão do piracicabano. Nós morávamos na Rua João Crisóstomo, 67, na Paulista, viemos para o centro, meu pai e eu, com o intuito de arrumar um emprego para mim. Ele foi a Casa Guerra, onde era freguês desde moço, o proprietário era o Sr. José Guerra. De lá fomos a Casa Coury, o Raja pediu que eu deixasse o meu nome e endereço, isso foi em uma terça-feira, quando foi no domingo o Raja apareceu em casa, não sei como ele achou, naquele tempo nem ônibus tinha. Ele foi a pé. Conversou com meu pai, acertando para na segunda-feira eu começar a trabalhar. O serviço era varrer, espanar, fazer entregas. Em 1954 eles construíram e inauguraram o Cinema Palácio, na Rua Benjamin Constant entre a Rua XV de Novembro e a Rua Rangel Pestana, onde atualmente funciona uma igreja. Eu até ajudei a puxar massa para a obra. Era um quarteirão já todo construído, não tinha terreno vazio. O cinema foi construído para comportar 1.100 cadeiras. Foi feita uma reforma e diminuíram a capacidade de cadeiras.
Quantos cinemas havia em Piracicaba nessa época?
Havia o São José, Colonial, Broadway e o Palácio. O Politeama foi construído mais tarde pelo Stolf.
Quando terminaram as obras do Cine Palácio o senhor trabalhou lá?
Fui trabalhar de porteiro. Trabalhava durante o dia na Casa Coury, saia um pouquinho antes das 18: h. ia para casa, tomava banho, colocava uma calça preta, um paletó cinza, e gravata borboleta, com camisa branca. Chegava ao cinema ás 19h. A sessão começava às 20:h. Eu que abria o cinema, o maquinista chegava na última hora, era o Lázaro Gorga, seu apelido era Zinho. Havia outro que era seu ajudante, eu o conhecia por Tito. Eram os dois que trabalhavam.
Entrando no cinema, do lado esquerdo havia uma bomboniere, quem era o proprietário?
Era terceirizada, pertencia ao Brancalion.
Acabada a obra de construção do Cinema Palácio houve a sessão de inauguração.
Foi em maio de 1954. O primeiro filme projetado chamava-se Lili. Era um musical, a primeira sessão foi às 20h, a segunda sessão foi às 22h. Na sessão de inauguração o cinema lotou, ficaram pessoas fora do cinema, não havia mais lugares. Quando era um filme de primeira linha sempre ficavam pessoas fora do cinema, não conseguiam ingresso para entrar.
A sessão inaugural foi normal ou foi franqueada gratuitamente ao público?
Não teve nada de graça, comprava o ingresso e entrava, normalmente. Naquele tempo não existia nada de especial para atrair convidados especiais, imprensa.
Com isso o senhor passou a ser uma pessoa mais importante?
Eu era porteiro e lanterninha também. Nós trabalhávamos em dois porteiros, o outro era o Durval Santana.
O senhor tinha dois salários, um na loja e outro no cinema?
De fato, não era lá essas coisas, mas era bom para mim que era solteiro.
Já havia a meia-entrada para estudantes?
Havia sim. Havia duas moças que eram da bilheteria, duas irmãs, Áurea Rodrigues e Célia Rodrigues. Havia uma entrada só no cinema, ficava um porteiro de cada lado, recebíamos em média 550 ingressos cada um. Ao pegar os ingressos, éramos obrigados a rasgá-los, porque tinha o fiscal do filme, que era uma pessoa determinada pela distribuidora dos filmes. Ele ficava ao lado, com um pequeno aparelho que contava o número de pessoas que entravam. Os filmes vinham até o Cine São José de onde eram trazidos até o Cine Palácio. Às vezes o filme passava primeiro no Cine São José. Quem levava as latas com os rolos de filme dentro era o Odilom.
Acontecia durante a projeção do filme de quebrar a fita?
Acontecia! Naquele tempo eram filmes de celulóide, Quando o filme arrebentava durante a sessão tinha que emendar. Acendia a luz do cinema.
Era obrigatório o uso de paletó e gravata para ir assistir a um filme no cinema?
Não, era um habito quase obrigatório o uso de camisa de mangas compridas.
Para que idades existiam filmes proibidos?
Para 14 anos e 18 anos. Filmes proibidos para 18 anos geravam problemas, tinha que ter psicologia para avaliar pela fisionomia da pessoa a sua idade. Na dúvida tinha que pedir um documento que provasse ter 18 anos ou mais. Se não mostrasse documento não entrava. Ao meu lado tinha o comissário de menores, isso quando o filme era proibido para menores de 18 anos. Se não tivesse os 18 anos o menor era convidado a deixar o cinema e recebia o dinheiro do ingresso de volta.
Em que dias funcionavam as sessões?
De segunda-feira a sexta-feira era uma sessão só, as 20h., sábado e domingo eram duas sessões, das 20h e das 22h, à tarde tinha a matinê. Teve um período em que eram projetados filmes domingos às 10h da manhã, o público era formado por criançada. Passava praticamente só projetavam desenho animado.
Qual era a função do senhor como lanterninha?
Se fosse no comecinho do filme a pessoa não achava uma poltrona vaga, eu corria a lanterna procurando alguma vaga. Se houvesse vaga indicava e a pessoa sentava-se.
Havia lugares reservados para autoridades?
Não, algumas autoridades tinham a entrada permanente franqueada.
Cinema sempre carregou a fama de ser um local preferido dos namorados. Alguma vez o senhor teve que ser mais enérgico?
Não cheguei a ter problemas por estar sempre atento e sendo visto andando pelo cinema durante as sessões. Com o passar do tempo, adquire-se experiência, com certa facilidade controla o ambiente. Qualquer situação piscava-se a lanterna era o suficiente para serenar os animos. Em uma única ocasião tive que acender as luzes, um estudante excedeu-se, armou uma algazarra. Algum tempo depois ele veio desculpar-se. O cinema sempre contava com a presença de um policial da Guarda Civil.
O senhor chegava a ver o mesmo filme por diversas vezes?
As vezes enjoava. Quando surgiu o filme em terceira dimensão tinha-se a impressão de que a imagem saia da tela. Usava-se um óculos especial. Foi um filme muito popular, chamava-se “Museu de Cera” com Vincent Price, foi lançado em 1953. Dava-se a impressão de que os objetos saltavam da tela. Foi um grande sucesso em Piracicaba.
Houve um episódio curioso sobre um filme rodado em Piracicaba?
Quando “Os Três Garimpeiros”, em 1954, foi rodado no Rio Piracicaba, filmavam durante o dia, a noite, depois que terminava a sessão normal eles começavam a assistir que tinham filmado durante o dia. Era uma série de repetições, muitas vezes a mesma cena, para ver se tinha algo errado. Eu ficava até o fim, era afinal eu quem fechava o cinema. Dava quarenta a cinqüenta minutos de filmagem.
Como o senhor ia embora para casa?
A pé. Eu morava na Rua Ipiranga, era solteiro. Não tinha ninguém na rua, não havia viva alma.
E os filmes do Mazzaropi, lotavam o cinema?
Lotava de tal forma que ficava muita gente sem poder entrar no cinema. A fila começava na Rua Benjamin Constant ia pela Rua XV de Novembro e descia até a Avenida Armando Salles. Naquele tempo não existia televisão, o cinema era a diversão.
Até que ano o senhor permaneceu no Cinema Palácio?
Fiquei até 1957. Casei-me com Rita Durrer Leite em 25 de dezembro de 1954, na Catedral de Santo Antonio. Um pouco antes de me casar meu pai mudou-se para a Paulista na Avenida Dr. João Conceição, em uma das casas do Michel Pedro José. Em 1961 comprei uma Lambretta e guardava na casa do Atílio Bortoletto. Onde depois foi a Alvarco era pasto, logo adiante era a embarcadeira de gado da Companhia Paulista. Do Aliberti para baixo, na esquina da Rua do Rosário com Madre Maria Teodoro, existiam umas duas casas, logo depois era plantação de cana. Atrás do barracão do Michel, onde hoje funciona uma imobiliária, era tudo plantação de algodão.
O senhor andou de bonde?
Muito. Hoje penso, como éramos preguiçosos, além de ser jovem, da Rua XV de Novembro até a Estação da Paulista dá mais ou menos 1 quilometro, mas tinha que vir de bonde, talvez para se mostrar. Talvez por ser moda na época, e por estar usando terno de linho branco. Três anos após me casar saí do cinema, na loja fiquei até maio de 1980, foi vendida, já não era mais dos irmãos Coury. Aposentei-me com 33 anos de serviço.
O senhor praticava algum esporte?
Gostava de jogar boche. Aprendi no Aliberti, joguei no Nauti Club, no Club Regatas. Era bom de ponto, no Aliberti era bola de madeira, depois apareceu à bola de massa, era mais pesada. Por várias vezes ganhei disputa de jantares. Um dos últimos lugares onde joguei foi no Bar Cruzeiro, onde ganhei jantares, medalhas, troféus, que o meu neto se encarregou de guardar.
O senhor tinha algum apelido?
Tinha sim, engenheiro. Por causa do boche, eu fazia aqueles efeitos na bola, começaram a me chamar engenheiro, acabou pegando. Era a famosa trivela.
Porque mudou o cinema?
Por causa da televisão, é muito mais pratica você não necessita sair de casa, se quiser até toma um café e continua assistindo. A televisão acabou com o cinema.
O senhor era popular na cidade?
Pelo fato de ter trabalhado na loja e no cinema era muito conhecido.
O cinema fazia a projeção dos filmes com quantas máquinas?
Sempre com duas máquinas, um filme pode ser composto por sete ou oito partes (rolos), vem cada um em uma lata metálica. Quando está terminando um rolo, o segundo operador, já liga a outra máquina. Toda projeção de filmes exigia dois operadores. O filme é contínuo. O filme de terceira dimensão funcionava com as duas máquinas simultaneamente, ele atua sobre a visão do olho esquerdo e direito. Um dos motivos de não ter tido tanto sucesso é o fato de ser extremamente trabalhoso quando partia um pedaço do filme, tinha que buscar o ponto exato do outro rolo.
Acontecia de acabar a energia elétrica no cinema?
Era muito raro.
Qual foi o filme que mais marcou o senhor?
Foi “Quo Vadis”.
Quantas vezes o senhor assistiu o filme longa metragem “Os Des Mandamentos” com a duração de 3h49min?
Umas cinco ou seis vezes. Era lindo, mas muito cansativo.
Se o senhor ligar a televisão à tarde os filmes exibidos são mais “fortes” do que aqueles proibidos para maiores de 18 anos?
Muito piores! A censura carimbava o que podia exibir. Hoje novela das 18h supera qualquer exibição daquela época.
Em sua opinião a época vivida pelo cinema não tem volta?
Não volta mais.
Não volta mais.