PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 26 de junho de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
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ENTREVISTADO: NATALINO CABRINI
O leiteiro deixava o litro de leite na porta da casa e ninguém roubava. O padeiro deixava o pão, na nossa região era a famosa “bengala”, ainda não havia pãozinho francês. Havia famílias grandes que compravam mais de um litro e assim existiam cestinhas de metal para dois, quatro e seis litros. O pão era deixado embrulhado nos famosos “papel de pão” ou saquinhos de papel pardo que depois eram usados para escorrer a gordura das frituras caseiras. Ninguém pegava não. À noite, após o jantar, era hora de colocar o litro lavado no portão, que durante a madrugada seria trocado por outro, cheio. Um tempo romântico, em que as lanchonetes não ficavam abertas pela madrugada afora, poderia até acontecer de alguns jovens ao saírem de um baile, com fome e sem nenhuma opção tomassem o desjejum da madrugada com o leite e o pão alheio. Uma peraltice que o guarda civil, armado de um apito, poderia flagrar e levar o autor até a delegacia, onde o “malfeitor” seria devidamente esculachado pela autoridade de plantão. Algumas casas tinham um armário de aço, embutido na parede, com divisões e as inscrições “pão”, “leite”, “jornal”, cada uma com sua respectiva chave. O entregador abria, colocava o produto no devido compartimento, o morador retirava mais tarde pelo lado de dentro da casa. A mudança de hábitos da população é muito mais dinâmica do que foi no passado. O leite consumido pela população era in natura, quando surgiu o leite pasteurizado, além de mudar o habito de consumo, os interesses econômicos promoveram debates das qualidades dos dois produtos. A pessoa que consome o leite in natura (sem pasteurização) corre sérios riscos de contrair graves doenças como brucelose, tuberculose, listeriose. Foram feitos pronunciamentos apaixonados de pessoas bem intencionadas, discursos e artigos inflamados dos eternos políticos e oportunistas que pegam carona na falsa defesa do interesse popular, muitas vezes sem conhecimento de causa. Nesse clima Natalino Cabrini, aos 21 anos, assumiu a direção dos Laticínios Piracicaba.
O senhor é piracicabano?
Nasci em 25 de dezembro de 1924 na localidade de São Lourenço do Turvo, região de Araraquara. Sou filho de Sperendio Cabrini e Isabel Augusta Palmieri Cabrini, tinha nove irmãos. Meu pai era fazendeiro, sócio da Pasteurização Mariliense Limitada. A usina de leite tinha diversas fazendas, entre elas a Santa Hermínia, Recreio. Passei minha infância na fazenda situada no bairro Tiberão, era uma época de recursos limitados, não havia a pratica da medicina como hoje, muitas doenças eram tratadas com as tradicionais benzedeiras. Meu pai era céptico com relação a esses tratamentos domésticos. Levantávamos muito cedo, percorria a fazenda, tocava os bezerros para poder tirar leite, eu aprendi a ordenhar ainda muito novo, devia ter seis ou sete anos de idade. Tínhamos uma vaca cor castanha, chamada Favorita, era muito brava, investia em quem entrasse no pasto. Minha mãe de longe gritava: “Favorita!” Ela então parava. A iluminação a noite era a da lamparina, aos domingos jogávamos bola. Uma das minhas defesas no gol custou-me um dente! As festas de São João, Santo Antonio e São Pedro eram muito animadas. A semana santa era respeitada, na sexta-feira maior não se permitia cantar, comer carne. Eu tinha uns nove anos quando minha família adquiriu uma padaria em Padre Nóbrega, depois outra em Oriente, isso foi em 1937.
O senhor aprendeu a fazer pão?
Quem fazia era o padeiro, eu aprendi como enrolar o pão, fazíamos aquelas bolinhas de massa e depois abríamos a massa, para fazer pão d água, pão corneta, pão doce, bengala, sovado. As entregas eram feitas com carrinho de tração animal, havia um cavalo, o Alazão, que era “meio de lua”, de vez em quando disparava e corria até a cocheirinha dele. Era um cavalo bravo, forte, muito bonito. Quando acabávamos de trabalhar na padaria íamos á fazenda para transportar café da roça até a sede, colocávamos seis burros na carroça e trazíamos quinze, dezesseis sacos de uns sessenta quilos de café. Mudamos para Marília, meu pai tornou-se sócio da Pasteurização Mariliense, que fabricava os produtos Iporã. Comecei a trabalhar na usina de leite limpando o chão, todo serviço difícil o gerente Cavalini me mandava fazer. Um dia resolvi não aceitar mais as ordens dele, como meu pai não admitia que qualquer filho permanecesse sem trabalhar busquei outro emprego. Meu irmão mais velho, o Abílio, convenceu-me a retornar ao trabalho na usina de leite.
Houve uma mudança na direção da Pasteurização Mariliense?
Com a concordância do meu pai, Estevam Romera Júnior adquiriu as cotas de outros dois membros da sociedade, ele tinha sido telegrafista da Companhia Paulista de Estradas de Ferro em Piracicaba. Isso foi em 1942. O Romera assumiu a gerencia da usina, realizou mudanças no sistema operacional. Passei a ser o encarregado dentro da usina, fui mandado á rua para fiscalizar as entregas, que eram feitas em carrinho de tração animal. Os litros usavam inicialmente tampas de madeira, depois de metal, até passarem a utilizar tampas de alumínio. Em 1945 a empresa adquiriu os Laticínios Piracicaba.
Essa aquisição que o trouxe á Piracicaba?
A usina de Piracicaba estava em uma situação difícil, os desmandos administrativos abalaram sua estrutura. Fiquei muito surpreso quando o Romera disse que me mandaria para cá, pois meus irmãos mais velhos do que eu poderiam perfeitamente ocupar o cargo. Questionado pelo meu pai, o Romera disse que tinha que ser o Natalino mesmo. Dois dias depois eu estava no trem, vim até Bauru, no dia seguinte tomei o trem até Rio Claro, chegando lá o Romera alugou um carro que nos trouxe até Piracicaba.
Qual foi a primeira impressão de Piracicaba?
Foi de ser uma boa cidade, mais antiga, e o povo um pouco fechado. Fomos até a casa de José Barbosa de Mattos, situada á Rua Tiradentes, de lá seguimos á usina. No caminho fui verificando a possibilidade de me hospedar em algum hotel. O Hotel Central não era viável para mim, pelo seu custo. O Hotel Regina não dispunha de vagas, o mesmo acontecendo com o Hotel Jardineira. A usina ficava quase na esquina da Rua São João com a Rua XV de Novembro, na esquina propriamente dita havia uma casa de propriedade da família Stolf. Essa casa existe até hoje, onde por muitos anos funcionou ali a Clinica Dentaria Marcelino Serrano.
E a sua impressão quanto à usina?
Percebi de imediato que poderia melhorar as operações ali realizadas.
Ainda muito jovem, o senhor não provocou olhares de espanto por parte dos funcionários?
Senti certa hostilidade de determinados funcionários, como meu irmão tinha estado nessa usina uns dias antes para consertar uma máquina, ele havia observado o comportamento descuidado por parte de alguns funcionários, e tinha me dito a respeito. Após vistoriar a empresa, documentos, terminado o expediente, dirigi-me até o Hotel Jardineira. O proprietário era o Amilcar Orsini, disse-lhe que deveria permanecer em Piracicaba e que queria ficar no seu hotel, como não havia vaga acabei dormindo no escritório do hotel. Era um hotel com muita procura. As acomodações dos quartos não eram muito boas, mas a comida era excelente. A família Orsini morava no hotel, assim como vários estudantes da ESALQ, muitos viajantes se hospedavam lá. Havia um determinado viajante que quando se hospedava, ninguém conseguia dormir, o ronco do homem era muito forte, mesmo de portas fechadas incomodava a todos.
E o banheiro como era?
Péssimo! Era um banheiro só para o hotel inteiro. Arrumava-se uma hora em que ninguém usava o banheiro ou entrava-se na fila!
Quais clubes sociais o senhor freqüentava?
Fiquei sócio do Cristovão Colombo, do Coronel Barbosa, do XV de Novembro. O Cristovão ficava na Rua Governador esquina com a Rua São José, no andar superior de um prédio que hoje abriga uma relojoaria. Naquele tempo o presidente era o dentista Dr. Bruno Ferraioli, que gostava muito de mim, por ser assíduo nos eventos realizados pelo clube. Certa vez ele pediu-me para trabalhar na eleição da rainha do clube. Tinha que escolher as candidatas, cuidar das vendas de votos, na apuração do resultado da eleição. Trabalhei por muitos anos nessa atividade, o Álvaro Azevedo Ribeiro me ajudou.
As pretensas candidatas, sem as qualificações necessárias aborreciam?
Tinha umas que vinham atrás da gente como o rato corre atrás do queijo! Eu trabalhava e me divertia! Naquele tempo as coisas eram diferentes, as moças permaneciam sentadas nas cadeiras e os rapazes escolhiam com quem iria dançar.
E a famosa “tábua”?
Às vezes acontecia! Era a recusa da moça em dançar com o rapaz que a convidara. Ele tratava de disfarçar e sair logo da presença dela.
Lembra-se das marchinhas de carnaval?
Lembro-me sim! Algumas delas, como Bandeira Branca, Cachaça Não é Água, A Jardineira, Aurora. (Natalino põe-se a cantarolar com perfeito domínio sobre as letras).
O senhor casou-se em Piracicaba?
Casei-me na catedral em 1953, com Maria Dirce Sbravatti Cabrini. Tivemos cinco filhos: Heloisa Maria Cabrini, Claudete Aparecida, Mauro Antonio, Roberto Cabrini, Marcos Cabrini. Todos com formação universitária, sendo o Roberto mais conhecido pelo seu trabalho na televisão brasileira.
A queda do Comurba mobilizou muita gente em Piracicaba, o senhor cooperou também?
Fiz a doação de cinqüenta litros de leite, fornecidos diariamente para as equipes que fizeram as retiradas de sobreviventes e corpos dos escombros.
A Catedral de Santo Antonio foi construída como?
Foi construída uma igreja maior, preservando a antiga igreja dentro. Terminada a construção da igreja nova a velha foi demolida. Fui um dos muitos que colaboraram para a construção da nova igreja matriz. Ajudei muito o XV de Novembro de Piracicaba.
Dirce e Natalino. Ao fundo Norma e Armando Dedini
Natalino com o filho Roberto ao colo
A implantação de semáforos em Piracicaba teve a sua ajuda?
A prefeitura passava por uma situação financeira delicada, o prefeito era Luiz Dias Gonzaga. O artista plástico Archimedes Dutra tinha um irmão, João Dutra, que morava encostado á usina de leite, em determinado dia o Archimedes pediu-me para colaborar com a implantação de semáforos, o que de fato fiz.
Havia outros vizinhos famosos?
Fortunato Losso e Eugenio Losso eram donos de uma propriedade junto à usina.
O senhor os conheceu?
Muito bem! Eles foram proprietários do Jornal de Piracicaba, que criticava a usina de leite. Naquele tempo o povo era contra o leite pasteurizado, achavam que era adicionada água, maisena, no leite. A divergência com o Jornal de Piracicaba era comercial, nunca pessoal.
O consumidor queria o leite in natura?
Eles queriam o chamado leite puro, leite cru. O leite pasteurizado dizia-se que sofria todo tipo de alteração. E é exatamente ao contrario, a pasteurização é a higienização do produto, é um processo que fiscaliza a origem do produto, seu transporte, o processamento, até a entrega ao consumidor.
Fatos inusitados ocorreram com o leite fornecido ao laticínio?
Em uma ocasião foi encontrado um peixe no leite vindo do fornecedor. Era um pequeno lambari. O engenheiro agrônomo Dr. Afonso Pecorari Neto, era o chefe da fiscalização, pedi-lhe que fizesse um exame de teloscopia, que é uma analise mais demorada. O resultado apontou que o leite não continha água. Pode ter sido alguém que fez algum tipo de brincadeira com o fornecedor, ou ainda esse latão de leite era utilizado também para pegar água do rio e o peixe tenha ficado no fundo do recipiente. Havia leite que chegava ao laticínio com água adicionada ao produto. O leite pasteurizado é um leite padronizado, a fiscalização sobre o produto é muito rigorosa.
Até que ano o senhor permaneceu à frente dos Laticínios Piracicaba Ltda.?
Iniciei em 7 de janeiro de 1947, permaneci até a usina ser vendida em 1965, para a Vigor.
Qual foi a sua próxima atividade profissional?
Adquiri de Antonio Sallun uma loja de roupas na Rua Governador Pedro de Toledo, próxima a Casas Bahia. Inovei, coloquei roupas prontas, implantei o sistema de crediário, vendia no atacado. Quase toda a semana ia para São Paulo para fazer compras. .
Como foi a mudança de leite para roupas?
Na época de fato houve quem achasse que eu não me sairia bem com a loja. A minha esposa teve uma atuação fundamental, ela tem muita habilidade para tratar com modas e suas tendências.