PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
JOÃO UMBERTO NASSIF
Jornalista e Radialista
joaonassif@gmail.com
Sábado 04 de junho de 2010
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
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ENTREVISTADO: Francisco Corrêa Garcia
No próximo dia 20 de setembro Francisco Corrêa Garcia, mais conhecido como Chiquinho Correia, estará completando 96 anos. Parou de dirigir faz pouco tempo, mas ainda monta a cavalo, “desde que seja um cavalo manso” reforça. Uma história de vida em que os desafios sempre foram constantes e aos quais sempre enfrentou com muita coragem, determinação e retidão de caráter. Portador de acentuada miopia desde a infância só usou óculos após passar por consulta com o Dr. Penido Burnier na cidade de Campinas. A deficiência visual já tinha provocado graves transtornos na vida do jovem Chiquinho. Descendente de espanhóis, foi agricultor de alho em larga escala, produzindo mais do que o mercado consumia, mandava alho para Americana, São Paulo. Duas paixões tomavam conta do seu tempo de lazer: cururu e truco. O jogo de truco, ou truque, era na base do “leite de pato”, ou no máximo jogava-se valendo “uma janta” que a dupla perdedora pagaria. Sempre com todos os jogadores desfrutando do jantar e da companhia. O jogo de truco, ou truque, ao que consta é um jogo praticado inicialmente por imigrantes italianos, caiu no gosto popular e foi adotado em muitos lugares do interior de São Paulo. É um jogo onde as cartas do baralho fazem parte, mas requerem extrema vivacidade e malícia dos jogadores, o blefe é uma das artimanhas mais utilizadas, saber quando ocorre é essencial para ganhar-se o jogo. É comum os jogadores levantarem o tom da voz gritando: “-Truco!” O adversário pode retrucar “-Seis” e assim por diante. Quem nunca assistiu a um jogo de truco pode achar que os jogadores estão brigando, tamanha a algazarra que é feita!
O senhor é nascido em Piracicaba?
Nasci no Bairro do Pau D`Alhinho, Município de Piracicaba, em 20 de setembro de 1914, sou filho de Francisco Corrêa Rodrigues e Gracia Garcia Moral Munhoz. Meu pai veio da Espanha com oito anos e a minha mãe com vinte anos, vierem em épocas diferentes. Inicialmente meu pai morou na Fazenda Pau D`Alho, depois mudou-se para um sítio no Bangé, adquirido pela família. Ele foi vender laranja na Fazenda Pau D`Alho, quando conheceu a minha mãe. Casaram-se, permanecendo um ano no sítio do meu avô, comprou então um sítio no Pau D`Alhinho, que foi o lugar onde nasci.
Lembra-se do antigo Mercado Municipal?
Conheci o Mercado Municipal no tempo em que em frente era terra nua, não havia calçamento. Para vender os nossos produtos estendíamos um encerado no chão para colacar os produtos em cima. Eu era ainda menino quando comecei a vir ao Mercado para vender verduras. O prédio era pequeno, depois foi aumentando. Lá, aos 24 anos de idade, conheci a minha esposa Isaura Lopes, ela tinha 15 anos. Namoramos por três anos e nos casamos em 1941, na Igreja Sagrado Coração de Jesus, mais conhecida como Igreja dos Frades. Um casamento que permaneceu por mais de 67 anos, Em 1998 minha esposa ficou doente, perdeu 88% da memória, faleceu em 29 de outubro 2008, tivemos três filhos: Francisco, José e Manoel. Ainda solteira, ela morava na Rua do Rosário, na Paulista, era uma rua sem asfalto naquela época. Sou cunhado do Isidoro (Nenê) Lopes, do Antonio Lopes, moradores da Rua do Rosário. Quando me casei tinha vinte e sete anos e minha esposa dezenove anos. Fui á luta, fui trabalhar no sitio levando apenas uma enxada na mão.
Com que condução o senhor vinha vender seus produtos em Piracicaba?
Vinha com carrinho de tração animal, demorava uma hora e meia para chegar, fazia esse percurso uma vez por semana. Trazia verduras, repolho, pimentão, berinjela, alho. No Mercado Municipal não tinha comprador para toda a quantidade de alho que eu produzia. Os viajantes de Americana, São Paulo chegavam ao Mercado e falavam com os corretores que sabiam que eu tinha alho. Iam até o meu sítio e efetuavam a compra. Levavam o alho com caminhão.
O senhor fazia réstia de alho?
Fazia réstia! O alho era todo trançado, com 50 cabeças de alho, o milheiro de cabeças de alho era composto por 20 réstias. Nós fazíamos réstias com 52 cabeças de alho, com duas cabeças a mais.
Quanto tempo o senhor levava para fazer uma réstia?
Eu fazia por noite de 20 a 25 réstias. Passava o mês inteiro trançando alho, ia deitar lá pela meia noite, uma hora da madrugada, minha mulher trabalhava comigo. Levantávamos cedo, ás cinco horas já estávamos em pé, ia para a roça no clarear do dia. Eu tinha uma várzea muito boa onde plantava arroz. Ás vezes o Rio Piracicaba enchia muito, as águas entravam pelo Ribeirão do Garcia e inundavam a várzea, perdia todo arroz.
O senhor caçava?
Nunca peguei uma espingarda para caçar!
E pescar?
Meu pai tinha um sítio que tinha quatrocentos metros de barranca de rio, nunca armamos uma rede, nunca pescamos. Só trabalhávamos. Nós víamos os pescadores a cada 100 metros pegavam um dourado, a Ilha das Flechas ficava em frente a propriedade do meu pai.
Qual era a alimentação básica?
Comíamos arroz e feijão, verduras, leite, de vez em quando um franguinho, ovos, batata frita. Quando vinha ao Mercado comprava sardinha. No período em que trançava alho, ás 10 horas da noite minha esposa fazia uma espécie de polenta, bem feita e colocava açúcar, nós comamos e ferrávamos de novo a trançar o alho.
E a famosa miga?
No tempo da minha mãe nós comíamos. Minha esposa sabia muito bem fazer a miga. É uma comida que dá muito trabalho, tem saber fazer. Existem dois tipos de migas. Uma é feita com fubá, farinha de trigo, e muita banha de porco. Tem que ser bem cozida e mexer muito bem para ficar miudinha. Outra forma de fazer é a “miga em tortilla”, feita só com trigo e banha, é muito gostosa, dá muito trabalho para fazer. Meu pai contratava camaradas para trabalhar no seu sítio, isso na época em que o mato crescia junto ás plantações, era necessário cortar. Esses camaradas diziam: “Dona Gracia que comida a senhora vai fazer hoje?” Ela respondia: “-Vou fazer arroz e feijão.” Eles retrucavam: “Não Dona Gracia, faz uma miga!”. Não eram espanhóis ou descendentes, eram negros. Quando se come um prato de miga irá estar o dia todo sustentado, é uma comida forte.
Que tipo de lavoura era a sua?
Plantava de tudo, menos cana-de-açúcar. Plantei alho em grande quantidade, algodão, cereal. Cheguei a plantar três sacos de sementes de alho, adquiri um sitio, e fui lutando muito. O pouco que tenho agradeço á Nosso Senhor Jesus Cristo, á Virgem Maria e á minha mulher.
O senhor continuou a levar produtos para serem vendidos no Mercado Municipal?
O Mercado foi melhorando, passou a ter maior área coberta, tinha mesas para as mercadorias á venda serem expostas, no começo, quando eu ia com o meu pai.
Aos noventa e cinco anos, o senhor ainda monta a cavalo?
Só em animal muito manso!
Quantos quilômetros o senhor andava a cavalo do seu sítio no Bairro do Garcia até outro sítio onde tinha gado no Tanquã?
A distância de um lugar ao outro é de 50 quilômetros, por uns sete anos eu ia e voltava uma vez por semana. Saía ás três horas da madrugada, olhava o gado e voltava á noite, onze horas, meia noite, percorrendo na ida e na volta o total de cem quilômetros. Tinha um cavalo muito bem cuidado, atravessava por um atalho, a noite bambeava a rédea do cavalo e ele fazia o trajeto de forma correta. Praticamente era ele quem nos guiava. Chamava-se Alazão. (Chiquinho se emociona ao lembrar-se do animal). É difícil achar um cavalo como aquele!
Quando o senhor mudou-se do sítio para a cidade de Piracicaba?
Foi em 1957, vim morar na Rua Campinas, aqui conheci muitos amigos, José Nassif foi um dos meus grandes amigos, que tinha em sua companhia dois filhos, um deles chamado Marco, que ás vezes passava em casa, sempre lá pelas três horas da tarde e dizia: “Seu Chico, papai quer que o senhor vá jogar um truquinho lá”. Com meu parceiro Zé Birolo, subíamos até a casa do José Nassif, divertíamos até as dez horas da noite, em uma harmonia como se fosse da família. Depois o Marco ficou mocinho, veio o filho dele chamado João que dizia: “-Seu Chiquinho! Papai falou para o senhor ir jogar uma trucada!” Isso aconteceu por muitos anos, nunca tivemos um descontentamento. José Nassif tinha um irmão médico, o coronel João Nassif, toda vez que ele vinha de Curitiba á Piracicaba visitar a família eu era convidado para jogar truco. Sempre gostei muito de cururu e jogo de truco. Aos sábados eu dizia: “Seu Zé! Dez horas vou ao cururu!”. Ele não queria que eu fosse, mas eu ia. Isso no tempo dos cururueiros Bastião Roque, João Davi, Zico Moreira, Pedro Chiquito, Nhô Serra, eram todos meus amigos. No truco joguei muitas jantas (jantares), só consegui ganhar amigos. Nunca tive um descontentamento com os parceiros de truco, quando iam a minha casa, na hora de nos despedirmos, nós nos abraçávamos. Na casa do meu amigo Zé Nassif apareceu muitos jogadores afamados, nós sentávamos para jogar, eles ganhavam, após algumas partidas percebíamos que o jogo não estava certo, quando era descoberta a marca do baralho eles levantavam e iam embora. Alguns jogadores de truco levavam um baralho novo, com suas próprias marcas. Ganhei muitos amigos no jogo do truco.
As jantas, ou jantares, onde eram feitas?
Joguei varias jantas no Porto João Alfredo (Artemis), era feita em um bar que também servia a comida, era quatro jogadores daqui contra quatro jogadores de lá, meu parceiro era o Juvenal. A outra dupla era formada por Juca Jordão e Chico Penha. No Pau Queimado quem fazia a janta era o José Alonso. Jogamos valendo janta na Bassororoca, na casa do Chico Gomes, no então bairro rural São Jorge (hoje urbanizado), na Rua do Rosário. Em muitos lugares as esposas dos jogadores faziam a janta. Na Rua do Rosário, havia um bar cujo dono era um japonês onde joguei um torneio com o parceiro Lupércio Ferraz, havia umas cinco duplas participando, Lupércio e eu ganhamos o torneio. Ás vezes acabava “perdoando” o adversário perdedor e dividíamos as despesas da janta!
A sua casa da Rua Campinas foi construída pelo senhor?
Eu comprei a casa pronta, no quarteirão em que eu morava, Rua Campinas entre a Rua Edgar Conceição e Avenida do Café, havia várias casas, do Fiori Novello, Francisco Moraes, José Grella, no quarteirão em frente não havia nenhuma. Mais tarde Alfredinho Casarim e outros construíram suas casas ali.
O senhor conheceu o Dr. Francisco Salgot Castilon?
Conheci, devo obrigação á ele. No Tanquã existia um senhor com 110 anos, chamava-se Benedito, não tinha ninguém que olhasse por ele. Dois amigos meus, Aristides Pires e Manoel Martins, disseram que o Seu Benedito estava muito doente, havia a necessidade de internação. Com o meu jipe trouxe-o até a Santa Casa, onde me disseram que não havia vaga para interná-lo. O médico Dr. Omir Dias de Moraes, a quem devo essa obrigação, morava próximo ao mercado, ao procurá-lo contei-lhe o ocorrido. Voltei a Santa Casa com um bilhete do Dr. Omir. Imediatamente arrumaram acomodações ao Seu Benedito. Após permanecer por 30 dias internado, com o auxilio do Dr. Salgot, conseguimos levá-lo para o Lar dos Velhinhos, onde terminou o resto dos seus dias. O pessoal da Santa Casa foi até Serra Negra, hoje Ibitiruna, onde levantaram a data de nascimento do Seu Benedito, estava escrito na uma ficha do paciente, na cabeceira da cama, idade: 110 anos!
O senhor conheceu Vitório Fornazier?
Muito! Ele tinha venda no Pau D`Alhinho, adquiriu de João Sabino Barbosa a esquina da Rua do Rosário com Avenida Dona Jane Conceição, hoje Super Mercado Balan. João Sabino, outro grande amigo, morou no Bangé ainda criança, éramos amigos desde aquela época teve barbearia na Rua do Porto, na Rua do Rosário, colocou uma máquina de beneficiar arroz e uma venda tinha uma grande freguesia.
Onde atualmente é a Padaria Takaki, na Praça Takaki existia uma venda?
Era de propriedade de Antonio Lucas.
Conheceu algum frangueiro?
Conheci vários. Silvério Correa, Bepe Molina, Antonio Granal, Zé Patrício, Mathias, Regolim, Antonio Angelocci, levavam de tudo, pão, miudeza, linhas, agulhas, trocavam com ovos, frangos.