PROGRAMA PIRACICABA HISTÓRIAS E MEMÓRIAS JOÃO UMBERTO NASSIF Jornalista e Radialista joaonassif@gmail.com
Sábado, 27 de fevereiro de 2009.
Entrevista: Publicada aos sábados no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana As entrevistas também podem ser acessadas através dos seguintes endereços eletrônicos:
http://www.teleresponde.com.br/ http://blognassif.blogspot.com/ ENTREVISTADO: SILVÉRIO DE LELLIS ALTOMANI
Muitas vezes ao nosso lado estão verdadeiros exemplos de lutas realizadas pelo ser humano. Em decorrência de nossa visão estar centrada em determinados objetivos, não se encontra mais o tempo para o estudo de situações vividas por alguma pessoa, ou grupo de pessoas. Com isso abrimos mão de conhecer valores incalculáveis de superação do ser humano por ele próprio. Como por exemplo o infinito amor de uma mãe por seu filho. Tangidos pela mídia insaciável abolimos os verdadeiros valores da maravilhosa natureza humana, cujos limites até hoje são desconhecidos. Em Piracicaba encontramos diversos exemplos que a princípio consideramos serem quase sobre humanos. São demonstrações concretas de domínio do espírito sobre o corpo. Exemplos de fé e persistência inabaláveis. Um jovem muito sorridente, brincalhão, que parece estar brindando a vida, aos poucos foi tornando-se conhecido por muitos piracicabanos. O seu estado de espírito, sempre alegre, deixa para um segundo plano o fato de ele ter alguma dificuldade física para realizar alguns movimentos. O seu brilho interior é muito maior do que as suas limitações. Silvério De Lellis Altomani nascido em 25 de setembro de 1965, filho de Eliza Karl Altomani e Walter Sebastião Altomani, tornou-se muito conhecido pelos deliciosos bombons que vendia. Fazia esse trabalho por brio próprio e por necessidade de complementar a sua aposentadoria precoce de um salário mínimo por mês. Ninguém para contar melhor a trajetória de Silvério do que ele mesmo e a grande lição de amor dada por sua mãe Eliza Karl Altomani.
Dona Eliza a senhora nasceu onde?
Sou paulistana, nascida na Vila Maria, criada nos bairros do Ipiranga e em Santana, na capital. Considero-me piracicabana, já estamos morando em Piracicaba há uns trinta anos. A cidade de São Paulo em que morei já não existe mais. Piracicaba é a minha realidade hoje. Aqui consegui muitas coisas boas. O meu marido é mecânico de maquinas de costuras industriais, ele mudou-se para Piracicaba com a finalidade de trabalhar para Galdino Brieda, que era o proprietário da Brivest. Era uma empresa que na época confeccionava para a Alpargatas, tendo um bom parque de máquinas. Achamos que seria uma boa troca de cidades. Fomos morar em uma casa situada no bairro Nova Piracicaba. Levávamos uma vida tranqüila.
Em que dia a vida da família da senhora mudou completamente?
Foi no dia 29 de agosto de 1985. O Silvério trabalhava no Banco Bradesco, situado á Praça José Bonifácio. O gerente pediu para que ele e mais outro funcionário do banco fosse entregar o malote da Telesp em Campinas. Eram apenas documentos, que não tinham seguido com o carro forte que já havia passado. Na ida, bem em frente á Usina Furlan, o rapaz que estava dirigindo o veículo de sua propriedade, um Gol, tentou uma ultrapassagem de um treminhão, não conseguiu.
Silvério foi usando uma caneta esferográfica que um profissional da saúde salvou a sua vida?
Foi. Com a fratura do maxilar, minha boca foi obstruída. Não conseguia respirar. Ao que consta foi um dentista que fez o procedimento médico chamado traqueostomia. É um dos procedimentos cirúrgicos mais antigos descritos na literatura médica, algo parecido com um “buraco na garganta para permitir a passagem de ar”. Nós até hoje desconhecemos o nome dessa pessoa.
A rodovia SP-304 ainda não tinha sido duplicada?
A pista foi duplicada um mês após ter ocorrido o acidente. Meu marido voltando de São Paulo passou pelo local onde havia ocorrido o acidente. Ao chegar a nossa casa ainda comentou: “Estou exausto. Vi um acidente horrível quase na entrada da cidade.” Era o acidente com o nosso filho. Logo após recebemos o recado, dizendo que ele não estava bem. O Pedrinho Libardi, nos levou, dirigindo o nosso carro. Nós não tínhamos condições de dirigir. Chegamos até a Santa Casa de Piracicaba, o médico informou que as próximas quarenta e oito horas seriam decisivas para a sobrevivência do Silvério. Ele havia quebrado o maxilar em três partes. A equipe que o atendeu era composta por quatro médicos: Dr. Luiz de Castro, Dr. Antonio Carlos Martins, Dr. Weber Reynolds, Dr. Eudes de Freitas Aquino. Esses eram os quatro médicos que mais tínhamos contato.
Quais eram as condições físicas do Silvério quando a senhora trouxe-o para casa?
Foi após 60 dias de permanência na Santa Casa. Ele tinha uma cânula número 5, para respirar. Com fralda. O diagnóstico era de Tetraparalisia Estática (Múltiplas deformidades de coluna e membros superiores e inferiores). Não movimentava os braços e pernas. Fiquei por quatro longos anos cuidando dele. A primeira providencia que tomei foi retirar todos os objetos do quarto dele e forrar com espuma de nylon. Para ele ficar a vontade. Na ocasião eu tinha duas empregadas e um motorista para me ajudar. Eu o levava para a Santa Casa, para a fonoaudióloga, fisioterapeuta. De segunda a sexta feira eu o levava para as piscinas do Water Center, do Water Sports. Para que ele fizesse hidroterapia.
Quem arcava com todos esses custos?
O Banco. O banco pagou tudo, até determinado ponto. Quando o tratamento dele deu-se por encerrado. Foi quando ele sentou-se, pois até então ele não conseguia sentar-se. Ele não falava. Tinha ainda uma cânula muito grande, uma sonda para alimentação muito grande. Precisei trabalhar muito até que ele mostrasse alguma reação. O Prof. Dr. Pérsio Azenha Faber, Especialista em Cirurgia e Traumatologia Buco Maxilo Facial foi quem cuidou do traumatismo sofrido na face e arcadas dentárias.
A senhora o levou para ser examinado em Campinas?
Fui diversas vezes. Um médico chegou a me dizer que o comportamento dele seria meramente vegetativo. O cérebro dele tinha uma bolha de sangue com o tamanho aproximado de um ovo. Isso poderia aumentar ou ao contrário sumir. Ele era de fato estático. Se o colocasse sentado o seu comportamento era o de um bebe de dois meses. Sem apoio, a cabeça pendia de um lado para outro. Eu dava quatro a cinco banhos nele por dia. Enrolava-o com faixas, o colocava na cadeira de rodas e levava-o para passear na Nova Piracicaba. Ele olhava, observava. Mostrava os pássaros, motos, carros. Ele passeava com sonda para alimentação.
A senhora considera ter dado a luz para o Silvério por duas vezes?
Não. Não sou tão maravilhosa assim. Isso é a atitude de qualquer mãe dedicada. A primeira coisa que considero importante para ele e que o ensinei, foi que ele pedisse para ir ao banheiro. Ensinei de que forma ele deveria proceder. Ele erguia a mão esquerda e dizia: “Lá!”. Eu amarrava-o na cadeira de rodas e o colocava para tomar as refeições com a família. Minhas filhas choravam ao ver o irmão daquele jeito. Eu colocava várias batatas fritas e vários garfos. Mandava-o que pegasse e comesse. Com a mão esquerda ele colocava a batata na testa. Expliquei que ele deveria ter coordenação motora, levar a batata até a boca. Isso foi por vários dias, bastante tempo. Até que ele começou a querer a andar sozinho. Ele ia se agarrando no que podia. A primeira vez que ele saiu sozinho de casa eu o segui, escondida por árvores, muros. Ele já tinha se livrado da sonda, da fralda.
O Silvério nesse período já tinha voltado a falar?
Ainda não. Ás vezes ele brigava com a irmã mais nova e sussurrava, com silabas pausadas: “Sua imbecil!”. Era o máximo que ele tinha conseguido falar. Dizem que para falar mal logo se aprende! Eu perguntava o que ele tinha vontade de comer, ele então dizia: “Sanddd..”. Sabendo que ele queria sanduíche forçava-o a dizer a palavra. Dizia então: “-Já sei, você quer sandália!” Dei-lhe a sandália. Imediatamente ele recusou. Providenciei um enorme sanduíche do qual ele comeu menos de uma mordida. Mas valeu. Essas foram as suas primeiras palavras. Em uma ocasião meu marido extraviou o talão de cheques. Ficou procurando pela casa toda. Passou inúmeras vezes perto do Silvério, que na época ainda estava amarrado na cadeira de rodas. Meu marido disse em voz alta: “-Se me lembrasse pelo menos o número da minha conta.” O Silvério disse-lhe o numero da conta! Com isso percebemos que determinadas coisas ele gravava de uma forma muito eficiente. Era mais uma esperança de que um dia ele faria tudo de novo.
Silvério, você estudou até que grau?
Quando ocorreu o acidente eu estava fazendo o curso de Técnico em Processamentos de Dados, que funcionava no prédio da Unimep. Antes de ir trabalhar no banco trabalhei em uma empresa, hoje extinta, chamada “ASES” Assessoria, Serviços e Sistemas. Era uma empresa de processamento de dados, ficava na Rua do Rosário, entre a Rua Prudente de Moraes e Rua São José. Em dezembro de 1985 estaria me formando como Técnico em Processamento de Dados.
Dona Eliza, o Silvério tinha Carteira de Habilitação antes de sofrer o acidente?
Ele já era motorista e dos bons. Após o acidente, no período mais avançado de sua recuperação, ele ainda estava fragilizado. Quando tinha que ser feita faxina em casa, isso o incomodava muito. Eu então ficava com ele dentro carro, com ele no volante. Nessa época ele já estava falando. Conversávamos, escutávamos música. O Silvério ficava inquieto, mexia em tudo dentro do carro. Até que um belo dia ele deu a partida e saiu com o carro. Deu uma volta no quarteirão e parou.
Como foi que o Silvério passou a conviver com os bombons?
Ele conheceu uma moça, chamada Ana Paula Barros, uma ruiva de olhos azuis, muito bonita. Ela fazia e vendia bombons. Resolveram morarem juntos. Um dia eu estava descendo a Rua Ipiranga, quando vi o Silvério com uma caixa de isopor. Parei o carro perguntei o que ele estava fazendo? Ele disse-me que estava vendendo bombons. Que precisava ganhar dinheiro, para manter a casa. Na hora tive uma crise de choro. E olha que é muito difícil me ver chorando.
Como foi o casamento do Silvério?
Casaram-se em uma chácara. Silvério com terno, ela com um vestido próprio para a ocasião. O registro foi no cartório da Vila Rezende. A lua de mel foi em Águas de São Pedro. O Silvério foi dirigindo um fusca. Voltaram de lá, continuaram a trabalhar com bombons. Inicialmente eles foram morar na Rua Benjamin Constant, logo acima da Avenida Dona Jane Conceição em frente ao Varejão Benjamin. Depois o sogro do Silvério providenciou um apartamento próximo nas imediações da Avenida Raposo Tavares. Alguns meses depois a esposa dele queria voltar para Florianópolis. Nessa época eles já tinham uma filha de quatro meses. Acabaram mudando-se para lá. No final de mais de um ano, romperam o casamento. O Silvério viajou sozinho, por vinte e duas horas. Dirigindo o fusca. Saiu de lá ás duas horas da tarde. Foi em uma época de chuva intensa. De tudo isso o melhor fruto foi uma linda filha que eles tiveram.
Ele voltou á Piracicaba e passou a vender bombons, quem os produzia?
Eu tive que aprender a fazer bombons! Eu e minhas filhas! No início foi um desastre!
Silvério você é bem conhecido em Piracicaba, chegou a viver alguns fatos pitorescos?
Logo que comecei a andar, um médico aconselhou: “Dona Eliza, dê uma bengalinha para ele se apoiar, isso irá ajudá-lo no equilíbrio”. Eu peguei a bengalinha, e fui comprar pão em uma padaria a dois quarteirões de casa. Peguei o pãozinho com dificuldade, vim como um idoso, com a bengalinha, me apoiando nela. Uma senhora, já bem idosa, estava varrendo a rua. Ela disse-me: “-Filho, posso fazer-lhe uma pergunta?” Parei, olhei para ela. Aquela caminhada estava difícil para mim. Disse-lhe: “-Pois não senhora!”. Ela disse-me então: “-Por que você bebe? Pare de dar desgosto para a sua mãe!”. Uma outra ocasião meu pai me levou para pescar, no barranco do Rio Piracicaba. Um pescador do outro lado do rio gritou: “-Que fogo, meu!”. Achando que eu estava alcoolizado.
Qual sua diversão preferida?
Passear dirigindo meu carro. Gosto de assistir filmes em DVD. Gosto de escrever. Escrevo á maquina.
Você tem computador?
Não. Ainda não.
Dona Eliza, o Silvério recentemente sofreu uma queda?
Pelo fato de andar muito, ele está mais exposto a pisos e locais escorregadios. Há pouco tempo ele teve um tombo ao pisar em uma superfície muito lisa e molhada. Após uma série de procedimentos, ele passou a usar um colete para sua recuperação. Já faz algum tempo que ele parou de vender bombons, embora já tenha se recuperado dos efeitos e do susto da ultima queda. Ele está namorando firme, uma moça aqui de Piracicaba, e tem planos para o futuro!