Aparecida Terezinha Gardenal Vicente
A Tribuna Piracicabana
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Entrevista: Publicada no caderno de domingo da Tribuna Piracicabana
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Entrevistada: Aparecida Terezinha Gardenal Vicente
Comunicativa, otimista, bem informada. Nota-se, porém que cada palavra que ela pronuncia tem o peso da experiência de vida adquirida ao longo dos anos. Pode-se dizer que se trata de uma pessoa de muita garra. Nascida para enfrentar os desafios que a vida oferece, sem perturbar-se. Ancorada em sua fé religiosa, que não é apenas um conceito relativo, e uma relação familiar muito consistente, Dona Cida, como muitos carinhosamente a tratam, revela uma vida de muita luta, trabalho e conquistas. Dentro da sua simplicidade construiu uma existência expressiva. Para si mesma e para muitos que já estiveram e outros que ainda permanecem á sua volta. Dona Cida é uma pessoa impossível de ser esquecida. Pelo seu caráter, sua retidão, a sua disponibilidade em ajudar seus semelhantes sem questionamentos indigestos. Ela é o testemunho vivo de que nossa sociedade só irá mudar e melhorar se as famílias mudarem e melhorarem.
A senhora nasceu em qual cidade e em que dia?
Nasci na cidade de Laranjal Paulista, no Bairro do Bicame, em 9 de abril de 1930. Sou filha de Adamo Gardenal e Anunciata Mateucci Gardenal, eles eram filhos de imigrantes italianos. Meu avô chamava-se João Batista Gardenal e minha avó Vitória Schincariol Gardenal. Vieram da Itália com três filhas pequenas e minha estava prestes a dar a luz ao meu pai, ele nasceu poucos dias após a chegada ao Brasil. Meu pai tinha o ofício de marceneiro, fazia móveis, jogos de quarto, fabricava carroças, troles, ferrava as rodas de madeira que eram utilizadas na carroça. A serra era movida a água. Ele construiu com madeira uma roda d água muito bonita. Ele desdobrava as toras de madeira na serra maior, e depois cortava nas medidas e repicava na serra circular. Além de ter um moinho de milho, fazia fubá, canjica. Eu trabalhava com qualquer máquina que havia no moinho.
Quem abastecia o moinho de milho durante o beneficiamento?
Nós mesmos! Nós éramos pau para qualquer obra! Hoje vejo essa criançada reclamando por qualquer coisa! Naquele tempo havia a troca de fubá beneficiado por milho que a pessoa trazia. Havia medidas de cinco, dez, quinze, e vinte litros. Era trocada uma vasilha cheia de milho por uma de fubá. Ou era vendido o fubá por peso. O fubá era um mimo! Meu pai aos sábados matava boi pela manhã quando chegava ao meio dia ficava lotado de gente. O bairro era grande. O povo vinha com as vasilhas para levar a carne.
Qual é a receita para fazer uma boa lingüiça?
Com cinco quilos de carne de pernil de porco, 300 a 400 gramas de sal, três cabeças de alho, uma cabeça de cebola, porque ela solta muita água, pimenta do reino bem fininha a gosto. Mói tudo junto. Se a máquina for boa basta moer uma vez só. Naquela época a máquina era manual, não era elétrica. Com o funil ensacava na tripa do boi. Jogava fubá em cima da lingüiça e deixava curar. Na época não havia geladeira, pegava-se uma lata de óleo de vinte litros, derretia gordura, tinha uma arte nessa função, a banha era bem branquinha. O bucho, a barrigada, era utilizado para fazer sabão. Para cada seis quilos de ingredientes usava-se um quilo de soda e dez litros de água.
Quantos filhos os pais da senhora tiveram?
Em vinte anos a minha mãe teve treze filhos, todos nascidos em casa eu sou a primeira filha deles, depois veio meu irmão que faleceu aos 50 anos de idade, Antonio Natalino Gardenal. A seguir nasceram os filhos: Vitória Domingas Gardenal, Maria Gardenal, Josué Elias Gardenal, Isabel Ely Gardenal, Irene Gardenal, João Mathias Gardenal, Junia Gardenal, Loide Herminda Gardeal,Tito Gardenal, Noemi Gardenal e Juraci Gardenal.
Após o nascimento de um filho havia o resguardo?
Por quarenta e cinco dias a mãe não mexia com nada. Não lavava nem roupa. Não fazia nenhum serviço mais pesado.
Como chamava o sítio em que a família da senhora morava?
Era chamado de Moinho do Damo Gardenal. Eles não costumavam chamar o nome completo do meu pai: Adamo. O único que o chamava pelo nome correto foi o Neco Escrivão, dono do cartório.
A família da senhora freqüentava alguma igreja?
Freqüentávamos a Igreja Presbiteriana do Bicamo.
Geralmente as famílias de origem italiana seguem a religião católica, como ocorreu a orientação da família da senhora para outra religião?
De fato, eram todos católicos. Mas em uma ocasião veio um missionário com o nome David Azevedo. A primeira casa para a qual ele se dirigiu foi á casa do meu pai. No diálogo entre eles saiu o assunto de religião. Após um bom tempo meu pai convenceu-se de que deveria seguir a religião presbiteriana. O povo do bairro dizia: “-Fulano é protestante agora!” Na época meu pai era o único. Um dia o David passou em casa e convidou meu pai para ouvir uma pregação na igreja. Meu pai escutou um versículo que o marcou muito: “-Filho meu dá-me teu coração.” É inacreditável o que meu pai fazia por causa desse versículo. Com o tempo o pessoal do bairro não se importou mais com o fato dele ser protestante. Com o tempo houve a adesão de outras pessoas, meu sogro foi um deles. Com o tempo quase todos do bairro converteram-se para a igreja presbiteriana.
Com quantos anos a senhora casou-se?
Casei-me com Américo Augusto Vicente. No dia 9 de abril eu completei 17 anos de idade, no dia 12 de abril de 1947 casei-me. O pastor que celebrou o casamento foi Lazaro Manoel de Camargo. Entrei vestida de branco, conduzida pelo meu pai. Quem deu a festa foi o Schincariol. Tivemos quatro filhos: Adão Lourenço Vicente era químico. Eunice Augusto Vicente, advogada, Evaldo Augusto Vicente, jornalista, e Américo Augusto Vicente Júnior, advogado. Mudei-me para Piracicaba com 34 anos de idade.
Como a senhora conheceu o noivo?
Morávamos todos próximos um do outro. Estávamos sempre na igreja. Ele era dez anos mais velho do que eu. Ele dizia aos amigos dele que ia casar-se comigo. Meu sogro Lourenço Augusto, casado com Vitalina Augusto dizia para o Américo: “Case com a filha de Damo que você terá uma verdadeira mulher dentro de casa: trabalhadeira, uma boa mãe.” Infelizmente ele morreu antes de nos ver casados.
Onde foi a lua de mel da senhora?
Foi no sítio mesmo. Trabalhando. A minha mãe quando se casou com meu pai passou oito dias em Salto de Itu em lua de mel. Naquela época não era comum viajar-se em lua de mel.
Depois de casada quanto tempo a senhora permaneceu no sítio?
Já faz quarenta e três anos que estamos morando em Piracicaba. Nós mudamos do sítio para Laranjal Paulista, lá tivemos um bar. Mudamos para Piracicaba com a intenção de montarmos uma pensão. O local escolhido foi uma casa situada na Rua São José esquina com a Rua do Rosário. Ali morei quinze anos. A casa pertencia á Luiz Dias Gonzaga, anteriormente tinha sido de Antonio Ribecco, onde hoje existe uma série de salões comerciais no local. Tinha oito quartos, uma cozinha grande, uma sala de jantar grande, e uma sala que era muito grande, onde servíamos as refeições. Os nossos vizinhos de esquina era a família Gianetti, o Pretel, onde hoje está a Uniodonto. Onde hoje se situa a Biblioteca Pública Municipal era um jardim muito lindo, com bancos, árvores. Na Rua Alferes com a Rua São José, onde hoje existe um moto taxi, morava Dona Mariquinha Libório. Mais á frente existia o Cine Broadway.
Quando a senhora mudou-se para essa casa uma parte foi reservada para uso da família?
Um quarto ficou para meu marido e eu e outro quarto para os filhos. O resto era alugado. Além de servir refeições. Davi Barros foi meu primeiro hospede, ele era funcionário do Banco Itaú, adorava carne moída e ovo frito com arroz e feijão. Entre os muitos hóspedes que tivemos lembro-me de Eduardo Daruge, João Paulo Feijão Teixeira, Luiz Antonio Campos Penteado. Onde hoje está a Uniodonto funcionava o Pronto Socorro de Piracicaba. Os médicos tomavam refeição na pensão. Ás vezes eles mandavam buscar um prato de comida já pronto. Adoravam a comida. Na época era tudo feito no fogão a lenha. Acordava ás cinco horas da manhã.
A senhora forneceu refeições para grandes empresas?
Forneci para os funcionários do Banco do Brasil. Quando foi construída a empresa Philips de Piracicaba eu forneci as refeições para o pessoal que estava executando as obras. A mesma coisa aconteceu durante a construção da Caterpillar de Piracicaba. Teve uma época em que chegamos a fornecer cinco mil refeições por dia. Só que já tínhamos comprado um fogão industrial de grande porte. Era uma comida trivial, bem caseirinha. A sobremesa eram frutas, doce de abóbora, doce de mamão, arroz doce. Para o arroz doce ficar gostoso deve-se cozinhar o arroz com leite.
A senhora fez um malabarismo para comprar o seu primeiro telefone?
O número do telefone era 7815. O cômodo reservado para os filhos foi ocupado por pensionistas. Essa renda extra é que complementou o valor necessário na compra do telefone. Por um período, os filhos se acomodaram em colchões colocados em área que durante o dia era de uso comum para os hóspedes, colocados a noite e retirados logo pela manhã cedinho. Assim que foi pago o telefone, os filhos voltaram a ter o quarto de novo.
Como era o nome da pensão?
Pensão da Aparecida. O pessoal chegava a Piracicaba e já se dirigia para lá. Principalmente os estudantes. Muitos até hoje, já formados, passam para nos visitar. Teve época em que chegaram a morar lá até 22 estudantes. Tudo com a mais absoluta ordem e higiene. Antigamente era muito comum haver um conjunto que compunha um jogo de marmitas, geralmente cinco unidades distintas. Em cada uma ia separado um tipo de alimento: arroz, feijão, salada, complementos. Com o tempo, a pensão foi dando lugar á um restaurante, havia grande procura pela comida. Os estudantes passaram a morar em repúblicas. Houve um período em que saímos dessa casa e fomos para o Bairro São Dimas. Mais tarde fomos para um local muito amplo na Avenida Luciano Guidotti. Nessa época já era um restaurante industrial, na época um fato não muito comum em cidade do interior.
A senhora mesma ia até o mercado para comprar os ingredientes?
Pedia por telefone e o pessoal mandava. Uma das fornecedoras era a Dona Maria Portuguesa. Carne eu comprava no Açougue Municipal, em frente ao antigo prédio da prefeitura, que foi demolido. O proprietário do açougue era o Seu Reialdo. Ao lado havia a Relojoaria do Tedesco. Nesse quarteirão havia uma Barbearia, o Berti Alfaiate.
De quem a senhora herdou essa garra toda?
Dos meus pais. Meu pai e minha mãe eram dois trabalhadores incansáveis.
Quem trazia a lenha para ser utilizada na pensão?
Era o Domingos Spolidoro, pai do Diógenes Spolidoro. A lenha chegava umas quatro horas da tarde, era descarregada do caminhão, deixada na calçada. Os filhos Eunice e Evaldo é que recolhiam. O Junior era muito pequeno ainda e o Adão estava fora de Piracicaba.
De onde surgiu o espírito de jornalista do seu filho Evaldo?
Foi um pedido meu. Foi uma benção que recebi de Deus. Meus pais moraram por um período de uns três anos em Maringá, no Paraná. A mudança quem levou foi o pai do Aldano Beneton, da Agencia Monte Alegre de Turismo. Fui visitar os meus pais, na volta fiquei grávida do Evaldo. Eu admirava muito a cultura que os reverendos possuíam. O nome do Evaldo foi uma forma de homenagear o pastor Evaldo Constantino Ramos. Pensei no meu intimo que meu filho deveria seguir uma carreira brilhante como a do pastor, que era um excelente escritor. O Evaldo com 11 anos de idade já lia e resumia livros para uma determinada professora que necessitava desse resumo em sua atividade profissional. Sempre foi precoce. O Evaldo é um homem muito bravo, só que ele domina seu temperamento. Deve ter herdado isso do pai. Muitos conhecidos da igreja que freqüento dizem: “Dona Cida, quantas mães gostariam de ser mãe do Evaldo”.
Qual foi a sensação que a senhora sentiu quando foi editado o primeiro exemplar do jornal feito pelo seu filho Evaldo?
Foi muito grande. Na época o jornal funcionava na esquina formada pela Rua Voluntários de Piracicaba com Rua Alferes José Caetano, onde hoje existe um laboratório de análises clínicas, ali nasceu o primeiro número da Tribuna. Na Rua Alferes José Caetano, 701 havia a Padaria Brasileira, era do Seu Yeda. Comprava muito pão ali. No final de ano levava quitutes para serem assados ali: leitoa principalmente. Também havia a Padaria Santo Antonio do Sergio Sachs, ficava para baixo da delegacia de polícia. Lembro-me do Dr. Alfredo de Castro Neves, ele que cuidava de todos nós. Lembro-me da Loja da Lua na esquina da Rua Prudente de Moraes com Alferes José Caetano, a Sapataria Oliveira que ficava na esquia da Rua Pudente de Moraes com a Rua do Rosário. Na Rua Prudente de Moraes entre Alferes e Rosário existia o Supermercado Guerra, a Agro-Comercial. Cheguei a ver o Governador Roberto de Abreu Sodré quando inaugurou o fórum no prédio existente até hoje, que também vi ser construído.
A senhora ia passear quando?
Nunca! Meu lazer era sentar na máquina de costura e trabalhar. É uma máquina Singer que conservo até hoje.
A senhora gostava de ouvir rádio?
Gostava, mas por causa do barulho não conseguia ouvir direito.
Uma profissão que a senhora gostaria de ter, se tivesse tido a oportunidade?
Eu tenho certeza de que seria jornalista!
A senhora tem algum apelido?
Algumas pessoas me chamam de Nena.
A senhora chegou a participar de algum coral?
Sempre cantei na igreja, como contralto.
Quantos funcionários a senhora chegou a ter no seu restaurante industrial?
Cheguei a ter cerca de 100 funcionários.
A senhora e seu marido chegaram a criar alguma criança sem lar?
Se somarmos todas as crianças que criamos em diversos períodos, foram mais de 40. De todas as origens possíveis. Alguns hoje ocupam cargos de destaque no trabalho que desempenham.
Tem uma passagem muito interessante de um menino que trabalhava em um circo?
Fui com meu marido ao Circo do Veneno, levar uma criança que queria conhecer o circo. Tinha um garoto bem miudinho, magrinho, vendendo amendoim. Quando terminou o espetáculo fui até a casa desse menininho. Lá encontrei o pai muito doente. Uma semana depois ele faleceu. Ele deu os documentos do menino para mim e para meu marido e disse: “Faça dele um homem”. Além desse menino havia mais quatro crianças. Foram todos morar na minha casa. E ali cresceram.